Costurando a liberdade: a moda como manifesto de Zuzu Angel
- Maria Luiza Albuquerque
- 14 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de abr.
“Minhas roupas falam por mim.” Essa frase, dita por Zuzu Angel, ainda ecoa como um manifesto silencioso de resistência, coragem e identidade. Mais do que uma estilista, Zuzu foi uma visionária que costurou nas tramas de seus tecidos um grito por justiça e liberdade. Em um movimento contrário ao de seus colegas de profissão, a mineira mergulhou na ousadia e brasilidade de explorar os tecidos e a cultura, conquistados por um Brasil de luta, resistência e uma diversidade audaciosa.
Uma saia rodada feita em pano de colchão, com uma estamparia única: nas cores rosa, verde e bege e o permear de vários pássaros por todo o tecido. Essa viria a ser a primeira peça feita por Zuzu com finalidade profissional, já contrariando os tecidos utilizados na época, quando os países europeus ditavam os materiais e os cortes das roupas. Desde criança, ainda como Zuleika de Souza, na pequena cidade de Curvelo (MG), a menina já tomava gosto pela costura e pela moda, fazendo peças únicas para as primas e amigas, que se impressionaram com sua arte logo de cara. Na adolescência, desenvolveu-se na capital mineira e, por lá, conheceu Norman Angel Jones, um militar estadunidense em missão no Brasil, com quem se casou e teve três talentosos e revolucionários filhos. Mas foi só depois de muitos caminhos percorridos que a artista chegou ao Rio de Janeiro, local que protagoniza a verdadeira virada de Zuzu com a moda, ao abrir um ateliê em sua casa e transformar o próprio quarto em uma oficina de costura. Com o apoio da primeira-dama da época, Sarah Kubitschek, amiga de sua tia e grande entusiasta de seu trabalho, Angel intensifica sua produção e se destaca no boca a boca dos cariocas e dos gringos turistas, que se esbaldaram a pedir mais roupas, no intuito de uma experiência completa ao mergulhar na cultura brasileira.
A moda é uma ferramenta que bebe do novo e da ciclicidade dos hábitos e gostos. Ela é uma reafirmação da existência do único e do coletivo, é onde comunicamos nossas crenças, valores e nossa essência. É legitimamente multidisciplinar e, como a própria Zuzu expressa, “a moda é comunicação”. Voltando aos anos 60, é difícil falar da moda brasileira até então, visto que a cultura popular do país ainda era fortemente influenciada pelos movimentos eurocentristas. As roupas buscavam apenas reproduzir os padrões vistos nas revistas, com cortes e modelagens baseados principalmente na estética francesa. As donas de casa daquela época tentavam copiar o que estava ao alcance de seus olhos: bancas de revista e os filmes mais populares, que pouco ou nada representavam a cultura latina. Diante desse cenário, Zuzu traz a ode às mulheres e à identidade brasileira, em especial, à cultura nordestina. Suas criações eram cheias de bossa e, ao mesmo tempo, de requinte. A estilista trouxe em suas roupas uma resistência silenciosa, se deliciando das riquezas nacionais e direcionando o olhar público sobre estampas tropicais, folclóricas, caipiras e materiais majoritariamente brasileiros.
Em 1966, a designer ascende na alta sociedade carioca e, com o desenvolvimento de desfiles marcados de símbolos nativos e de pura elegância, ultrapassa fronteiras e voa com sua moda, chamando a atenção de marcas internacionais. Zuzu, assim, leva a cultura cangaceira a Nova York em desfiles únicos, apoiada pelas gigantes da moda da época, como Bergdorf Goodman e Saks. Para além da predominância de elementos brasileiros, a estilista apostou também na busca pela liberdade e autenticidade feminina, ao produzir blusas e vestidos com modelagens que dispensavam o uso de sutiã.

Foto: Acervo Editora Globo, Gilvan Barreto, André Seiti, Joan Marcus e divulgação
No entanto, a trajetória de Zuzu foi atravessada por um episódio trágico: o assassinato de seu filho primogênito, em decorrência da ditadura militar. Stuart Angel, um militante opositor ao governo e participante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), entrou para a lista de desaparecidos políticos e descobriu-se, mais tarde, que foi brutalmente torturado e morto em meados dos anos 1970. Esse acontecimento marca uma virada na vida e carreira de Zuleika, que passa de estilista ousada a mãe revoltada, submersa em dor e na luta por justiça. Ela transforma seu luto e seu ressentimento em arte ao estampar seus vestidos e costurar sua marca com símbolos de anjos, pássaros engaiolados e manchas vermelhas. Com agulha e linha, borda a indignação e transforma suas peças em manifestos visuais. Aqui, sua moda deixa de ser um protesto discreto. Zuzu percebe que ela pode incomodar, que pode se utilizar de sua arte como gritos de oposição e desconforto.
“Eu, na minha santa ignorância. Fazendo moda, vestidinho com flor e passarinho. Moda alegre, descontraída. Moda e liberdade.”
Zuzu se une às mães que buscavam por seus filhos desaparecidos, atrás de respostas e de uma despedida digna. A esperança de encontrar Stuart vivo se esvai, dando lugar à certeza de sua morte. Sua procura e seus protestos foram em vão, mesmo dada a influência da artista no Brasil. E então, leva isso às passarelas como um manifesto, em especial no seu primeiro desfile político, ambientado em Nova York. A coleção teve duas partes: a primeira, com roupas festivas, alegres e tropicais; a segunda, vestidos brancos bordados com símbolos políticos e faixas pretas, representando o luto. Para encerrar, Zuzu entra na passarela vestida de preto, com véu, crucifixos e a foto de seu filho, num poderoso protesto. A repercussão internacional do desfile, como ela esperava, foi grandiosa. Todos os veículos internacionais comentaram a abordagem marcada por revolta e luto, contextualizando com sua história e a perda de seu filho, além de apontar em suas criações os símbolos de protesto. A mídia brasileira, entretanto, apaziguou o contexto político e demarcou uma infantilização das peças, ao dizer que elas foram inspiradas em livros infanto-juvenis por causa dos detalhes de pássaros e desenhos simples, mas que expressavam muito. Zuzu destaca que os traços simplificados foram propositais, para não ter complicações com a censura brasileira.
A partir daí, a artista nunca mais se desvencilhou do caráter político e do posicionamento oposicionista aos absurdos da ditadura militar no Brasil em sua moda. Mesmo com as ameaças, ela não demonstrou recuo. Foi pioneira em transformar a passarela em palanque político, antecipando um movimento que hoje ganha cada vez mais força. Utilizou o símbolo do anjo em todas as suas criações dali para frente, permitindo que a sociedade e que ela mesma nunca se esquecessem da brutalidade militar e do silêncio midiático sobre as centenas de milhares de militantes que morreram injustamente. Depois de algumas de suas coleções, Zuzu, então, lança o International Dateline Collection V - Nova Mulher em resposta aos comentários negativos sobre a estilista, ao afirmar que ela andava americanizada e que só lançava suas coleções fora do Brasil. Para provar o contrário, ela inaugura um novo acervo no Rio de Janeiro e convida uma grande amiga, Elke (que, mais para frente, se tornaria Elke Maravilha) para ser um dos rostos da coleção e mostrar sua brasilidade feminina. Juntas, elas encarnaram uma moda que não pedia licença para ser extravagante, para ser tropical, para ser política. Elke, com sua presença vibrante e espírito libertário, dava vida às roupas de Zuzu com intensidade.

Zuzu continuou delineando sua marca, com coleções que promoviam o questionamento e o protesto através das peças. Além de uma estilista, foi uma mulher notável, uma mãe guerreira e uma intelectual que contestava os padrões impostos pela sociedade, principalmente no período em que se encontrava. Mesmo sabendo que estava em constante perigo, não se calou e não deixou de lutar. Considerou a moda como um caminho para a revolução e para pautar sobre temas necessários para a sociedade, dando voz às mulheres, ao Brasil como um todo e suas regiões. Sabendo que estava sob os olhares do governo fascista, Zuzu escreveu uma carta como declaração e a enviou a artistas e intelectuais que a conheciam e a queriam bem, como o cantor e compositor Chico Buarque e o dramaturgo Paulo Pontes. No bilhete, ela disse: "Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho". Anos depois do bilhete, no dia 14 de abril de 1976, surge a notícia repentina da morte da estilista, com a alegação de ter sido através de um acidente de carro. Apenas em 2020 a verdade veio à tona: ao sair de um túnel no Rio de Janeiro, um outro veículo não identificado a fechou e ela perdeu a direção, bateu em uma mureta e capotou para fora da pista, resultando em sua morte imediata.
Mesmo após sua morte, é inegável que a estilista deixou um legado que perpassa gerações e contribui veementemente para a sociedade e a identidade brasileira. O Brasil verde e amarelo é o Brasil da tropicália, de Zuzu Angel e do folclore. Uma costureira que foi silenciada pelo regime militar, mas cuja voz ainda ecoa. Isso é evidente ao observar marcas como Dendezeiro e FARM, além de estilistas renomados contemporâneos, como Ronaldo Fraga e Isaac Silva. Ela mostrou em suas coleções que a "brasilidade", que já foi considerada exótica, pode ser um eixo criativo. Sua vida se tornou documentários e biografias e merece ser relembrada sempre que possível, pois seu legado redefiniu o papel da moda em tempos de crise: não como escapismo, mas como enfrentamento.
Em um Brasil que ainda costura suas cicatrizes, revisitar Zuzu é também vestir memória, coragem e esperança. E isso nunca sai de moda. E é por isso que, quase 50 anos após sua morte, seu nome continua a ser bordado na memória da moda brasileira.
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