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Cálculo & costume: sobre “Amores Materialistas”, de Celine Song

  • Pedro Minet
  • 18 de ago.
  • 9 min de leitura

Atualizado: 4 de set.

“Ora, que se engane. Todo mundo se engana mais cedo ou mais tarde. Especialmente quando se trata de casamento. Com o devido respeito aos casados, não há uma em cem pessoas de ambos os sexos que não tenha se casado enganada. Para onde quer que olhe, é o que vejo; e suspeito que assim há de ser, pois é a transação em que as pessoas mais esperam dos outros e são menos honestas consigo mesmas.”


Mary Crawford, em Mansfield Park, de Jane Austen



materialists bride 2025
Fotos: Divulgação

Levou uma semana ou duas, revisões, reavaliações e consultas, todo tipo de conversa e consumo de discurso infeliz em mais de uma plataforma, até alcançar o veredito: o mais novo longa de Celine Song – seu segundo, depois do premiado Vidas Passadas –, Amores Materialistas, é o filme americano mais chic do ano. Bom gosto impera; a matemática que sua protagonista aplica a relacionamentos é a mesma que parece reger Song em suas escolhas formais. Sedutora e límpida, é uma imagem de mundo cara, tão uniformemente elegante que traz desejo. Insaciável. Como uma ilustração Shoe Diva viva, atualizada. Paleta lânguida, planos simétricos, locações urbanas selecionadas com a minúcia que se esperaria de uma produção de Merchant Ivory. Alguns significantes discretos de Cool do Cat Power na abertura, Japanese Breakfast ao fim; Dasha Nekrasova numa ponta, a própria Dakota Johnson, com sua nonchalance aristocrata e resiliente frente a acusações filisteias de pouco talento – para deixar clara a diferença desta de sua típica comédia romântica hollywoodiana.


Menos discreto, ainda assim, é o amor palpável de Song pelo gênero e todos os seus clichês, herdados de séculos e séculos de corações esperançosos, desiludidos e transformados em mito, de Austen a Rohmer a Stillman a Ephron a Carrie Bradshaw e as primeiras notas de Suddenly I See despertando Anne Hathaway para o primeiro dia do resto de sua vida. A comédia romântica da segunda metade dos anos 90, parte essencial do cinema comercial até o fim da década seguinte, então praticamente extinta, já parece ter conquistado um espaço no imaginário popular comparável aos westerns dos anos 50 ou os espetáculos de ação dos 80, e Materialists joga conscientemente com seus códigos para testar como se aplicam aos dias de hoje. Como evocar o romance da era pós-Tinder, pós-MeToo, pós-OnlyFans, pós-algoritmo, pós-IA, assombrada e obcecada por imagens ininterruptas, perfeitas e grotescas, na tela do celular? Você deleita o público com certeza, uma imagem perfeita, e assiste-o irromper em ódio quando a heroína vira as costas para cometer uma estupidez. Como uma heroína de comédia romântica hollywoodiana há de fazer. 


dakota johnson materialists 2025

“Na comédia romântica, inícios são importantes 

porque os finais são sempre os mesmos.”


Joanna Walsh, Girl Online


Começamos no início. O início de tudo, ou melhor, seu sonho: os primeiros humanos, na Idade da Pedra, que decidiram, entre flores e lâminas – apenas –, firmar compromisso juntos. Despertamos em um sonho de Nova York, onde a sonhadora, Lucy (Johnson), refletida num espelho de boudoir contra um cenário creme, tão doméstico quanto estéril, dá os últimos toques na imagem perfeita diária. Seu sonho é reflexo de ofício: como Emma Woodhouse, sua vocação é formar casais. Funcionária-estrela de uma agência de matchmaking, ela é paga por solteiros para uni-los a outros solteiros que se encaixem razoavelmente em suas extensas listas de exigências. Eis o mundo dos aplicativos de relacionamento, redes sociais, algoritmos milimetricamente personalizados, namorados chatbot, em que a promessa de alguém mais próximo da projeção imaginada no espelho é estímulo constante para nunca se contentar. “Voluntariamente celibatária”, Lucy se declara, “Ou morro sozinha, ou caso com homem rico”. “Dá no mesmo, ao fim”, retruca a colega Dasha. O plano imediatamente seguinte já introduz, como transição-piada, o tal homem rico: Harry, private equity, interpretado por Pedro Pascal, galã superlativo para toda uma geração com daddy issues aos moldes sexualmente ambíguos de Cruise, Travolta e Rock Hudson. Cunhado de uma cliente que Lucy acabou de casar, após a cerimônia faz a primeira investida, e é imediatamente recebido com pragmatismo típico.


Bate-e-volta hipnótico e direto: salário, ocupação, amor, relacionamentos. Tudo no mesmo tom. Parceiros em potencial sondando um contrato. “Amor é fácil.”, ela pronuncia. “É? Acho a coisa mais difícil do mundo", devolve. Então a última pergunta: “O que quer beber?”. Como mágica, devastadora, o segundo homem surge. Garçom barra ator. Seu ex, John. Chris Evans. Lucy o reconhece antes de nós. Solta seu nome num misto de suspiro e grito, levanta, abraça. O tempo para. Intimidade. Numa eternidade fugaz de quadro, os dois permanecem envolvidos enquanto Harry aguarda sentado, sem nada a fazer além de esperar até que o tempo volte. Que a intimidade dê de volta o lugar aos dados, o fácil ao difícil, o sonho à realidade, sensibilidade à razão. Demora; o universo depende da heroína. De sua jornada. 


“Aqui ela tropeça; aqui nos faz esperar. 

Não há tragédia e não há heroísmo. 

Mas por alguma razão a pequena cena comove para além 

de qualquer proporção à sua solenidade superficial.”


Jane Austen, por Virginia Woolf 


Apesar de alguma resistência inicial, ela e Harry embarcam num relacionamento, consumado após a melhor cena do filme, um diálogo de jantar em luz baixa. Explicitando um para o outro tudo o que jaz sob a decisão de escolher ou não se comprometer com alguém na vida quando se é adulto e ambicioso, é uma cena de tratado de negócios filmada e atuada como um paciente cortejo. Lucy questiona por que alguém como ele, perfeito, se interessaria por alguém como ela; já nos trinta, de origem pobre, valor mediano no mercado da carne. Ele responde que é um investimento. “O que me interessa são seus ativos intangíveis.” Uma sedução bem-sucedida tanto de Lucy quanto da plateia. Uma confirmação de mundo. De perfeição.


Mais a frente no filme, assistiremos John interpretar uma cena de peça, Tom and Eliza (escrita e produzida originalmente por Song em Chicago, durante sua carreira de dramaturga), em que duas pessoas num encontro numeram para a plateia, nunca uma para a outra, tudo que pensam e percebem enquanto sentadas juntas a uma mesa de jantar. A conversa de Lucy e Harry parece uma versão alternativa dela, em que a frieza e staccato são mantidos, mas correspondidos. Dissecação mútua. Nada sob as palavras. Mesmo namorando, John permanece tanto seu porto seguro, a primeira chamada quando precisa de suporte emocional, quanto ponto de choque, visceral, refletindo de volta para ela as próprias angústias profissionais e existenciais. A rigidez de suas certezas. Um flashback retrata o fim do relacionamento de anos dos dois, anos antes, por angústia financeira. 


Assistindo ao filme, lembrei-me de outra comédia romântica com Evans, também nova-iorquina, também interessada em como os primeiros humanos se comparam aos últimos: Diário de uma Babá, de 2007. Era criança quando assisti, assim como quase todas do cânone chick flick. Nela, Scarlett Johansson, formanda de Economia, mais interessada em Antropologia, se infiltra numa família rica que parece ter tudo e, pouco a pouco, entende que noções teóricas sobre dinâmicas interpessoais falham quando confrontadas com a contradição paralisante, cotidiana, da intimidade. Se Amores Materialistas estivesse interessado em ser moral, creio que a lição soaria parecida, mas o filme é carregado por uma noção de inevitabilidade tão esclarecida que a conclusão final, já infame, não chega nem a ser agridoce; é o que é. “People are people”.


Homem rico, homem liso, qual paga conta, qual divide, qual é mais bonito, qual fode melhor, quem tem futuro, com quem você realmente consegue conversar? Ora Marianne de cama, Lady Susan manipulando, Anne Elliott se resignando. A postos para que a qualquer momento algum amigo ou conhecido te puxe pela mão a um canto ou envie uma solicitação de mensagem no Instagram lhe informando que o galante Wickham que te encanta carrega junto à ecobag e fones de ouvido de fio uma denúncia ou dez de violência íntima.


Assistindo ao primeiro bloco, encantado pelas esquinas e cafés e salas de baile de hotel – não se vê Nova York charmosa assim, essencialmente romântica, desde que Michael Ballhaus iluminou Brittany Murphy como Petra Von Kant em Grande Menina, Pequena Mulher –, pela dança fria do diálogo, me perguntei se uma comédia romântica ao molde da qual Song parecia se orientar teria lugar para todo tipo de risco e brutalidade inerente à jornada de experimentar e falhar até encontrar, para sempre ou não, o amor sonhado. Pois bem; poucos minutos depois, logo após o encontro perfeito com o homem perfeito, Lucy recebe a notícia de que Sophie, uma de suas clientes (algo como um “caso perdido”, quase, depois de uma série de encontros malsucedidos) foi agredida por outro cliente, num encontro arranjado pela protagonista. Lucy fica devastada, especialmente quando a chefe a informa, secamente, que não foi o primeiro caso. A agência, introduzida ao início do filme num traveling vertiginoso pelo cor-de-rosa de balões em forma de coração, taças de champagne, arranjos florais e uma equipe inteiramente feminina reminiscente das típicas revistas de moda em que uma Kate Hudson ou Jennifer Garner trabalharia num filme de 2005, agora ganha tons gélidos, esvaziados de thriller corporativo. A fantasia do romance entre romance e negócio é rompida, e seguimos Dakota de longe, sorrateira, inexpressiva, num silêncio que preenche o mundo, andando à sua mesa, então se escondendo numa cabine do banheiro como um herói de Pakula se deparando com o próprio papel numa conspiração de governo. 


materialists smoke window 2025

O incidente é um cataclismo que altera a rota da heroína rumo ao imprevisível, uma crise inversa de fé que culmina numa escolha tola, declarada sobriamente, pelo amor. Diferente de Lizzie Bennet, cuja dignidade é atormentada por todo tipo de praga personificada – a violência de Wickham, o pragmatismo de Mr. Collins, a classe de Lady Catherine – até ser reconhecida e recompensada pela dádiva, também personificada, de Darcy – que, por seu amor, destinado, praticamente incomunicável, é Imaterial, e, por sua riqueza, sua beleza física, é Material também –, Lucy decide frustrar toda uma legião de espectadores se recusando a aceitar a perfeição como prêmio.


Evidente que o rival de um milionário doce e charmoso interpretado por Pedro Pascal poderia ser menos extremo que um ator fracassado de 38 anos ainda vivendo com três colegas de quarto num apartamento insalubre, e as reações indignadas do público majoritariamente feminino são reflexo de uma geração decidida a não repetir rituais de humilhação e sacrifício de suas antepassadas, assombrada por um cenário de crise simultânea econômica e relacional a cada momento mais desolado. Todos já leram as manchetes: ninguém tem casa própria e ninguém fode; a solidão masculina é epidemia, a feminina é escolha informada; podcasters ensinam aos gêneros como se valorizar usando um ao outro sem nunca se machucar. Ir ao cinema e se deparar com uma Dakota Johnson – a protagonista projetável de fanfiction original desde seu debut em 50 Tons de Cinza, com seus olhos vagos, cabelo vagamente marrom, o desinteresse em parecer sequer vagamente enfática – tateando o homem perfeito, o objetivo final, e escolhendo deixá-lo passar parece um ataque, ou melhor, fracasso pessoal, que te lembra de todas as escolhas tolas e fracassos em nome de algo tolo como amor, que jurou nunca fazer, mas poderia, e talvez se arrependa de ter feito na vida (Barthes, em Fragmentos: “Ao longo de uma vida, todos os fracassos de amor se parecem”). “Propaganda”, você acusa. Mas cinema não é autoajuda; as escolhas são suas, por mais estúpidas.


O gênero da comédia romântica talvez seja o principal aliado da estupidez desde sua origem; é através dele que uma megera incorrigível é domada e ao ser domada sem querer doma em troca, em que um duque atacante de futebol não percebe que o amor de sua vida se esconde à sua frente sob peruca e costeletas tacanhas, em que dois rivais perfeitos na partida decisiva de suas carreiras jornalísticas entregam pontos um ao outro no último tempo para perderem juntos, em que uma superestrela hollywoodiana pode ser “só uma garota” na frente do homem comum que a fez sentir comum também. Assim como a tolice de um rifle de Chekhov baseado numa cirurgia de aumento de altura, ou um guarda-roupa como o de Lucy com um emprego de 80 mil ao ano, é o tipo de absurdo que somente uma romcom nova-iorquina de vinte anos atrás, quando tudo parecia diferente, poderia sustentar.


Não há fogos de artifício, corridas ao aeroporto, nem música pop; a declaração final é feita na escadaria de um prédio qualquer de bairro qualquer após o alento de uma vítima traumatizada, com a frase: “Esta é minha oferta final”. Uma ideia estúpida de largar o emprego para viver de amor (ou procurar outro) é subvertida imediatamente por uma proposta de aumento, e então deixada no ar. Lucy não passa de mulher carreirista frígida a donzela sensível, assim como seu pobretão não faz muito mais que promessas que só o tempo dirá se foram cumpridas. Por ora, escolhem um ao outro porque não há escolha. Porque é fácil. “Love is easy. Dating is hard.


“Bem está o que bem acaba,

e não acabou ainda,

embora o tempo esteja correndo contra,

e os recursos sejam precários.”


Helena, em Bem Está O Que Bem Acaba,

de William Shakespeare







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