Pó, poeira, ventania: a canção do Clube da Esquina
- Juliana Andrade
- há 2 dias
- 4 min de leitura
Lembro de voltar no fim da tarde para casa, cansada do trabalho, por ruas escuras. Sob a luz dos postes, eu caminhava devagar, como quem tem tempo a perder, e ouvia sempre as mesmas músicas nos fones de ouvido. Aqueles mesmos álbuns, que eu passei a conhecer de trás para frente, música por música, serviam de amigos, me acompanhavam em meio a exaustão de outro dia que passou. Um deles, em especial, estava comigo todos os dias, mesmo que apenas uma faixa ou outra. De 1972, um clássico, Clube da Esquina, por Milton Nascimento e Lô Borges.

“Se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton”, disse Elis Regina, e agora que também lembro disso, penso que nesses momentos, andando pelas ruas da minha cidade natal, a voz de Milton foi igualmente divina para mim. É difícil falar dos grandes nomes da MPB sem citar o Clube (há quem faça isso?), então, quando ouço mais uma vez os tantos álbuns que gosto, esse segue imaculado, tal qual uma imagem beatificada. Há nele algo muito brasileiro, que percorre cada quina do país; tem uma essência de terra – de pó, poeira, ventania – que vai além da icônica capa com os dois meninos, e mesmo neles também vive para sempre algo muito Brasil.
Por muito tempo se acreditava que as duas crianças na foto que ilustra o álbum eram Lô e Milton. Acho que para eles isso devia ser uma história engraçada, já que se conheceram quando grandes, muito maiores que Tonho e Cacau, os verdadeiros meninos sentados no chão. Lô era o irmão mais novo de Marcio Borges quando Milton o conheceu em Belo Horizonte. Um pouco menos menino e saído de Três Pontas, no interior de Minas Gerais, Milton tinha muita bagagem: foi adotado após a mãe biológica morrer quando ainda era criança e a mãe adotiva fazia parte do coral do maestro Heitor Villa-Lobos. A infância, tão rica de diversas influências musicais, encontrou na capital de Minas o solo perfeito para finalmente germinar.
Os anos 70 foram um fervo para a música brasileira, com os artistas que redefiniram a cara do nosso país explodindo (Novos Baianos, Elis Regina, Gilberto Gil…) na contramão do regime repressivo da ditadura, mas 1972 eternizou o encontro entre dois cantos, duas ruas e duas vozes. Foi Lô quem mostrou os Beatles a Milton pela primeira vez. Nessa fagulha musical que incendiava o mundo todo, os dois viram que era possível caminhar por uma terceira via, algo no meio do clássico e do popular, um entrelugar essencialmente nosso, com composições dignas de um filme – o cinema sempre foi inspiração para Milton – e melodias que cresciam de batuques às cordas. Na esquina da Rua Divinópolis e da Rua Paraisópolis, em Belo Horizonte, nasceu o Clube.
Essa psicodelia rock-bossa-nova que não se resume nem se prende foi característica do projeto de Milton Nascimento e Lô Borges. Era claro que se inspiraram nos Beatles, de quem Milton, principalmente, sempre foi fã, mas tinha um quê de tudo no que o Clube fazia. Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e Trem de Doido são exemplos perfeitos do lado quimérico do clube, delicado e sujo, que rasga e traça com o mesmo cuidado, porque, para mim, Lô sempre foi o mais psicodélico dos dois, e isso se refletia na forma como ele escrevia. Milton, por outro lado, escrevia, cantava e soava onírico. Como um sonho, como uma voz que nunca se ouviu, mas ao mesmo tempo já se conhece, imortalizou-se em muitas músicas – na própria faixa de abertura, Tudo O Que Você Podia Ser, quando fala das suas memórias de infância e do novo Brasil, amarrado pela ditadura e urgente por um herói como Emiliano Zapata, um dos responsáveis pela Revolução Mexicana.
O Clube da Esquina era um símbolo de união em meio aos anos de chumbo. As composições em crítica ao regime variavam de tom, como no contraste entre Clube da Esquina N° 2 – com seus homens, sonhos e gases lacrimogêneos – e Paisagem da Janela, repleta de cores mórbidas e homens sórdidos, que foi, inclusive, censurada pelos militares na época. A ideia de juntar esses músicos (Lô, Milton, Beto Guedes, Flávio Venturini e outros) era um arame farpado na mão dos militares, uma coletânea de poesias de denúncia que ressoou no Brasil de antes e ressoa até hoje.
Desde quando foi lançado, Tonho e Cacau emolduram um disco que levou o Brasil para fora do Brasil, mesmo só tendo descoberto isso vários anos depois, quando já nem eram mais meninos. Ainda é a cara do nosso país – se é que podemos distinguir um rosto em meio à multidão. Criticamente aclamado, os garotos do Clube marcaram com cor de amarelo queimado e verde-vivo um retrato imóvel da música popular brasileira, que balança e poeticamente escreve um viver eterno de todos que fizeram parte de um projeto tão camarada, mas principalmente de Milton Nascimento e Lô Borges.
Contrariamente às minhas voltas para casa sob a luz da lua, a canção do Clube da Esquina, para mim, é sol quente, ardido na cabeça. É tudo que mostra ser: cores saturadas, fotos de infância, um calor miserável que queima a terra batida no chão. Ao mesmo tempo é muito mais: uma reflexão acerca de um Brasil estarrecido, a camaradagem de amigos que fazem música, as canções ao Novo Mundo. O retrato mineiro de uma América onírica, encontrada dentro de uma garrafa na beira da praia, que se reproduz através de sonhos e letras que parecem psicografadas de um outro lugar. Um dos meus álbuns favoritos.
Tentando crer que os sonhos não envelhecem, às vezes volto para aquelas noites numa cidade onde não estou mais. Naquele momento, eu não ouvia meus passos, porque a música era alta demais. Lembro que sempre repetia a primeira faixa do disco mais do que as outras, procurando algo na voz tão confessional de Milton – tudo ou nada. Hoje acordei e me senti muito mal quando vi que Lô Borges tinha partido. A gente convive com a morte, aprende a aceitá-la, mas ninguém espera por uma convidada mórbida assim. Vão-se indo os grandes clássicos, marmorizando suas obras em pedra polida. Enquanto ouço o álbum e escrevo isso, penso que Clube da Esquina é tão jovem quanto é velho, assim como as crianças da capa, que estão eternizadas num retrato de menino, mas que jamais serão tão jovens outra vez.
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