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Se você pensa que o cinema brasileiro é água...

  • Montez
  • 11 de mar.
  • 4 min de leitura

Durante o carnaval de 1953, a música "Cachaça" foi, sem dúvida, a mais popular, tornando-se um verdadeiro sucesso. Lançada pela gravadora Copacabana, a canção foi interpretada por uma dupla inusitada, mas com uma sonoridade impecável: o comediante Colé (nome artístico de Petrônio Rosa de Santana) e a cantora Carmen Costa. No jornal A Manhã, de 15 de janeiro de 1953, uma das manchetes já refletia o clima da época: "Todos estão querendo cachaça", anunciando também que o disco havia alcançado a impressionante marca de 17.000 cópias vendidas.


Mas essa marchinha de carnaval, uma das mais influentes até a atualidade, já havia sido ouvida pelo grande público alguns meses antes, em um dos grandes sucessos do cinema de estúdio brasileiro: Carnaval Atlântida (1952, dir. José Carlos Burle). A cena reúne dois ícones do cinema nacional: Grande Otelo e Cyll Farney. Não era algo inédito uma marchinha estar presente em um filme. Na verdade, era recorrente em um dos subgêneros mais importantes do nosso cinema: as chanchadas.


elenco de carnaval atlântida
Elenco de Carnaval Atlântida (1952) / Foto: divulgação

Ainda hoje observada com certo olhar de desprezo por alguns, elas foram as responsáveis por um dos momentos mais vivazes da produção nacional. Sua importância vai além da popularidade, permitindo o público brasileiro se ver e se ouvir nas telas de cinema em meio a um processo de americanização da distribuição nacional (vejam que o problema não é recente). As chanchadas estão inseridas em um panorama maior. Sempre houve uma discussão – seja dentro da produção fílmica, seja na crítica à época – de que o cinema brasileiro deveria ter como inspiração o modelo hollywoodiano. Não era apenas o desejo de incorporar na linguagem cinematográfica os preceitos do cinema estadunidense, era praticar o que Jean-Claude Bernardet, em Cinema Brasileiro: propostas para uma história, chamou de “mimetismo”, ou seja, “[...] já que o público está vinculado ao espetáculo estrangeiro, a ideia é produzir filmes brasileiros que satisfaçam o espectador com os gostos e as expectativas criadas pelo cinema estrangeiro.” (2009, p. 101)


A ideia, por sua vez, não estava vinculada apenas a essa intenção de nutrir o que se espera, mas de tornar o cinema nacional algo envernizado, fazer com que a burguesia se sentisse representada da mesma forma que elas se viam, ainda que sua noção de dominação fosse tão míope quanto sua visão de si mesma. As chanchadas, por sua vez, surgem como a antítese do mimetismo, o que Bernardet chamou de “paródia”. Citando o teórico: “A paródia é uma avacalhação, um esculacho do modelo: ele degrada, macula o modelo do opressor” (2009. p. 116). E isso ocorria através da própria forma do gênero: havia a incorporação de apresentações musicais – do próprio elenco ou de cantores de rádio convidados – com esquetes de comédia, que provinham tanto das comédias estadunidenses quanto do teatro de variedades. Todas essas características estavam amalgamadas com referências que partiam do samba, dos cassinos e, claro, do carnaval.


As décadas de 1930 e 1940 foram bastante prolíficas no que se refere à produção das chanchadas. Um dos nomes mais importantes durante o estabelecimento desse processo estético e ideológico é Alô Alô, Carnaval (1936, dir. Adhemar Gonzaga). Mesclando uma história simples com números musicais, esse é o filme que estabelece Carmem Miranda como um dos principais nomes nacionais. É aqui, em um número musical inspirado nos traços hollywoodianos e um figurino adornado com babados que amplificam o movimento de seus braços, que Carmen exala a extravagância pela qual ela ficaria imortalizada. É nesse filme de Gonzaga, também, que surge um outro nome que viria a se tornar importante no cinema brasileiro: Oscarito. Ele será presença constante em diversas chanchadas a partir de então, participando de filmes como É Com Este Que Eu Vou (1947, dir. José Carlos Burle) e Carnaval de Fogo (1949, dir. Watson Macedo), um dos grandes sucessos da década de 1940.


O star-system “chanchadiano” brasileiro era formado, além de Oscarito, por Grande Otelo (ao lado do primeiro, um dos maiores símbolos quando se pensa no gênero), Anselmo Duarte, um dos galãs da época, Eliana, atriz e intérprete chamada de “namoradinha do Brasil” (bem antes de Regina Duarte) e José Lewgoy, que fazia às vezes o vilão das histórias. À parte de Duarte, todos os outros nomes estavam presentes em Carnaval Atlântida, um filme que ganha importância não apenas pelo sucesso que alcança, mas também por representar uma espécie de renovação do gênero, que já estava dando sinais de cansaço no final da década de 1940.


Um dos grandes feitos do filme de José Carlos Burle é transformar essa discussão entre mímese e paródia no mote do seu filme, realizando o que poderíamos chamar de “meta-chanchada”. O cineasta satiriza o próprio gênero em que se insere, as produções de Hollywood e o método de produção nacional. Partindo de Cecílio B. de Milho, um trocadilho com Cecil B. DeMille, o filme conta a história de como esse cineasta aspira produzir sua versão de Helena de Tróia, de cunho histórico, tentando afastar-se da ideia de chanchada. 


O Cecílio B. de Milho de Carnaval Atlântida, as marchinhas de carnaval e o jogo com a própria forma de fazer as chanchadas demonstra que buscamos afirmar um novo modelo, não uma tipografia mimética do que era feito nos Estados Unidos. Embora o gênero tenha encontrado um ocaso na década de 1950, com Grande Otelo, por exemplo, protagonizando um dos filmes mais importantes para a chegada do Cinema Novo, Rio Zona Norte (1958, dir. Nelson Pereira dos Santos), não podemos afirmar que as chanchadas se encerraram definitivamente.


Ainda que seus aspectos originários não façam mais parte da nossa cinematografia, o centro do gênero era a comédia, um gênero muito caro à nossa trajetória, que encontrou eco durante a década de 1970 com as comédias eróticas, as conhecidas pornochanchadas e, posteriormente, com o método de produção dos Estúdios Globo. O riso, assim como o carnaval, afinal, nunca se desfaz, apenas se transforma.


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