Carnaval e cor: Olinda Clama resgata a arte visual popular
- Clarice Rodrigues
- 7 de nov.
- 6 min de leitura
O carnaval é essência, calor e, acima de tudo, pessoas. Ele é feito por pessoas e para pessoas, seja em blocos de rua, em grandes estruturas como o Galo da Madrugada e o Homem da Meia-Noite, ou nas celebradas ladeiras de Olinda. Ladeiras essas que pulsam cultura e que neste sábado (8) abrigarão um encontro que vai além da festa.
O evento Olinda Clama, na Casa Nala, será um espaço de celebração e reivindicação do carnaval pernambucano e da ancestralidade afro, que está intrínseca na folia, com destaque para o papel do povo na construção de um movimento cultural que abrange raça, classe, gênero e arte. A exposição, realizada pelos artistas Juliana Rabelo e Lenino, conta a história dos antigos blocos de rua e da espiritualidade que os cerca. Em telas coloridas e vibrantes, eles capturam a essência dos foliões e personagens que fazem parte do carnaval, como caboclos, percussionistas, passistas e figuras ancestrais da Jurema Sagrada.

Juliana, proprietária da Casa Nala — nome dado em homenagem à mãe da artista — e também escritora, já trouxe uma exibição de obras que compartilhavam o mesmo teor da sua escrita: a perspectiva diversa de como é ser mulher na sociedade. Além de contar com Giovana Chrisóstomo e Pollyana Santos na idealização e produção cultural do evento, Olinda Clama também nasce da amizade entre o trio (Juliana, Giovana e Pollyana), que compartilham uma relação construída a partir de laços sociais e espirituais, tornando-a um dos pilares que sustentam a mostra. A partir disso, os amigos refletem a potência coletiva, as heranças sagradas e a paixão pela cidade. Segundo Juliana, “a exposição Olinda Clama é uma forma de agradecer, inclusive, a cidade, por ter permitido que a gente ficasse”, ressaltando a comoção por trás do carnaval e a resistência do povo preto que o mantém vivo.
“Carnaval não é só festa, não é só alegria. A alegria é um ato de resistência e é um ato de resistência por um povo que foi escravizado, que se mistura ao povo brasileiro original, e que, nessa mistura, sobrevive, traduzindo a sua espiritualidade e a sua ancestralidade, em festa.” - Lenino, artista pernambucano, em entrevista à Guilhotina.
Com uma abordagem que se volta ao papel da sociedade nas festas carnavalescas, para além da celebração da folia, Lenino, artista negro e pernambucano, retorna à Casa Nala com a exaltação de corpos negros e suas fés, com quadros que representam as heranças e a negritude em sua essência e cor.
O artista reúne a energia do povo e a espiritualidade em suas telas e compartilha com o público o seu crescimento espiritual, pessoal e artístico. Lenino, que vem de um lugar de fala apagado, marginalizado e sobretudo reprimido, encontra, através de sua arte, um lugar onde pode falar, se posicionar e ser quem é sem medo. “Eu costumo falar que eu produzo os meus sentimentos. As minhas vivências, aquilo que eu sou, o que eu acredito. E atualmente a espiritualidade tem sido o chão que eu tenho pisado para pintar as minhas obras. Tive esse encontro com a minha ancestralidade há um pouco mais de um ano e aí foi quando a minha arte também mudou completamente.”
Para a Guilhotina, ele conta um pouco sobre sua história e sua arte, iniciada em 2020 com a técnica de giz pastel oleoso. Junto a amizade construída entre ele e Juliana Rabelo, que resultou no projeto, o pintor decidiu ousar nas telas e estreia os primeiros quadros com essa nova abordagem na exposição deste sábado. Suas expressões artísticas registram a presença negra e sagrada afro-indígena; as novas telas celebram o carnaval pernambucano e seus ritmos como movimento cultural ancestral e do povo, lugar em que, segundo Lenino, a liberdade e força se encontram para dar vida à arte.
“Quando eu olho pra minha arte eu encontro a minha potência, eu encontro a minha força. Ela não vem de mim, muitas das minhas obras eu recebo da espiritualidade, sabe? Elas já vêm prontas assim na minha mente e eu só executo. Então eu também vejo a minha arte como um presente da ancestralidade, da espiritualidade, dos meus guias.” - Lenino, artista pernambucano, em entrevista à Guilhotina.
Olinda Clama é um reflexo direto da presença do corpo negro na cultura. Com as obras de Lenino, que afirmam manifestações afrodescendentes como a estrutura do Brasil, retrata a Noite dos Tambores Silenciosos, um ritual afro-brasileiro realizado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Olinda, momento de abertura do carnaval para os maracatus. A escolha do registro dessas vivências entrelaça as perspectivas de Lenino ao poder do encontro entre ancestralidade, negritude e arte, contando não só a história do artista, mas também a de muitos pernambucanos que, assim como ele, são foliões com orgulho. Afinal, carnaval é orgulho e coragem visceral, que liberta quem o vive.
Para além da mostra de arte sobre a história da festa popular, a artista Juliana Rabelo também amplia o olhar para quem vive e o faz acontecer. É nesse contexto que entra a representação dos Guias Mirins —jovens guias turísticos do passado —, protagonistas do lançamento do livro O Conto dos Mirins, que será organizado por Moab Marinho e escrito por Juliana Rabelo e Giovana Chrisóstomo. A obra irá reunir 21 histórias de “mirins” que, entre os anos 1980 e 1990, graças ao trabalho de Dom Helder Câmara, deixaram de ser meninos de rua na Cidade Alta e se tornaram guardiões do município olindense. O livro tem a ideia de resgatar a importância desse coletivo que simboliza resistência e atuação no cenário social pernambucano, além de destacar a relevância de Dom Helder na formação dessas figuras. A artista conta que o processo de idealização do conjunto de contos deu-se a partir de uma aproximação natural com a Associação dos Condutores Nativos de Olinda (ACNO). O projeto literário surgiu a partir da ânsia de Moab Marinho para contar sobre os Guias Mirins e dar maior visibilidade às histórias do povo preto. Com a produção e reunião de entrevistas e relatos dos “mirins”, o livro será celebremente anunciado neste sábado, mas sua publicação será realizada em 2026, no dia 6 de setembro, pela Luva Editora.
“Um mirim é um rapazote meio franzino, que espera o dia em que vai poder esperar alguma coisa do futuro. Um mirim decidiu ganhar o seu dinheiro sozinho, e assim foi para a rua, falar sobre a cidade cheia de segredos. Um mirim é um menino acostumado a ser julgado pela sua cor de pele e pela ausência de sapato. Julgamento que sussurra: para esse menino, não tem futuro que preste. Era assim para todo mundo. Mas não foi para um homem santo.” - Trecho do livro O Conto dos Mirins, escrito por Juliana Rabelo.

A Casa Nala simboliza um espaço coletivo de ressonância cultural que abraça expressões artísticas independentes e enaltece artes afro-brasileiras e regionais. Neste sábado, além da exposição de Juliana Rabelo e do lançamento literário de Moab Marinho, a cultura negra também será vivenciada gastronomicamente, com a Chef Pollyana Santos, que falará sobre sua técnica de ressignificação da culinária ancestral e a oferta desses alimentos como Acarajé. Clamar pelas heranças racializadas e identidade é o ponto-chave desse projeto. O ambiente é fértil para conhecer, dialogar e viver o que significa o povo e a cultura que ele constrói.
O evento consagra a coletividade e a comunidade, desde a celebração dos batuques e do frevo que queima pelos caminhos de Olinda, até a valorização de movimentos como o dos Guias Mirins e da ascendência que carrega a energia do povo e da arte, com a reivindicação de ações necessárias que honram além da folia de quatro dias. A arte ancestral e o movimento de encontro espiritual que Lenino, Juliana Rabelo e a Chef Polly Santos trarão para Olinda nos faz pensar: somos o povo, que movimenta, que cria. Ancestralidade, carnaval, arte — isso é povo.
A sessão cultural, que acontecerá neste sábado (8) na Casa Nala, traduz todos os tipos de manifestações que se encontram nas ruas de Olinda: a música, que será representada por DJ Paulinho Vintage e Talis Ribeiro, e a explosividade de cores com Juliana e Lenino. Além da exibição de literatura calorosa na cidade, entre contos, poesias e vozes com Moab, a ACNO e Silvana Menezes também costuraram palavras. Em meio a tudo isso, a presença da comida de Polly Santos se amarra com o teor ancestral e regional, que é ressaltado no evento que homenageia a cidade. Assim, o evento e a Casa Nala se tornam um manifesto cultural, pela cidade e pelo povo olindense.
O carnaval é calor humano, e tudo que compõe esse evento também é. As pinturas, a literatura, a gastronomia, a música e a poesia se entrelaçam como formas de resistência e celebração de um povo que transforma sua própria história em arte. Olinda Clama se estende para mais do que uma exposição: é uma manifestação artística e ancestral que ecoa a força de raça, classe, gênero e fé.
Assim como o carnaval do Galo da Madrugada e do Homem da Meia-Noite nascem do povo e retornam a ele, o evento reafirma o papel da coletividade na construção da cultura pernambucana e da identidade afro-brasileira, devolvendo ao público o que já lhe pertence. Porque é nas ruas, nas cozinhas, nos tambores e nas palavras que a ancestralidade se renova e segue viva. Nesse sentido, Olinda é um corpo vivo, território de fé, arte e vivências que fervem entre as ladeiras e os batuques, lugar que comove e estremece a alma de quem ama Pernambuco e seu carnaval. E é nesse espaço de comunidade e festa que o povo se reconhece como identidade, onde a arte encontra o seu lugar para nascer, crescer e resistir.
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