O movimento entre telas: contar histórias a partir de Akerman e Varda
- Montez
- 6 de jun.
- 5 min de leitura
“[...] já que não somos como construções a que se podem
acrescentar pedras de fora, mas como árvores que tiram
da sua própria seiva o nó seguinte do seu tronco,
a camada superior da sua fronde.”
Marcel Proust em “À sombra das raparigas em flor”

Chantal Akerman
We tell ourselves stories in order to live, escreveu Joan Didion. Entretanto, nem sempre as histórias contadas dão conta do que existe dentro dessas existências. Por mais que o cinema seja uma linguagem que tenta sumarizar uma narrativa da condição humana, existe a sensação de que nem sempre o que se desenvolve basta ou alcança o que precisa ser dito. Para tanto, se o encadeamento horizontal das histórias não são capazes de tal enunciação, há quem pense o cinema não como a arte do movimento, mas sim do tempo, da observação. Se Chantal Akerman filma Jeanne Dielman em sua rotina, o que lhe escapa dos gestos diários pode indicar o que lhe acontece ao final? Ou se Agnès Varda opta por contar a história a partir do momento em que sua protagonista morre, será que a história que contamos sobre alguém basta para contê-la? Tanto Akerman quanto Varda possuem algo deliberado na maneira em que se aproximam da imagem, seja ela em movimento ou suspensa no tempo. Elas transitam entre o filme, a fotografia, o vídeo e a instalação sempre cientes de que habitam as margens, não por acidente, mas por escolha.

Agnès Varda
É nesse interesse em contar história a partir de seus olhares, isto é, com o silêncio, com rostos, com as imagens que fogem de uma ordem lógica, que ambas realizaram no início da década de 2000 duas instalações: Les Veuves de Noirmoutier (Varda, 2005) e Marcher à côté de ses lacets dans un frigidaire vide (Akerman, 2004). A instalação da pioneira da nouvelle vague francesa conta com catorze telas de vídeo dispostas em formato retangular, cercando uma tela central maior. Cada vídeo mostra uma viúva da ilha de Noirmoutier falando sobre a perda do marido. Na tela central, as viúvas caminham lentamente ao redor de uma mesa na praia. O espectador, por sua vez, senta-se em cadeiras com fones de ouvido que estão alinhadas com cada tela e passam a ouvir o que cada uma dessas mulheres tem a dizer. Já Akerman constrói uma instalação dividida em dois cômodos: o primeiro, com telas de tecido com projeções de texto em espiral, que o espectador precisa caminhar para conseguir ler; o segundo cômodo com telas, uma na frente da outra, projetando imagens fixas e uma cena íntima entre Akerman e sua mãe, em que tentam traduzir o diário da avó da cineasta.

Imagem da instalação Les Veuves de Noirmoutier, de Agnes Varda
Torna-se formidável notar como essas instalações conversam diretamente com as filmografias de ambas e sobre como elas enxergam o mundo. Com Les Veuves de Noirmoutier, Varda cria uma espécie de vigília. Há mulheres vestidas de preto, circulando uma mesa na praia como se estivessem marcando o tempo com os próprios passos, enquanto o espectador é convidado a, junto com elas, contar as horas, sentir o tempo passar, transformando o luto em um ato coletivo. É uma instalação que lida diretamente com a morte, mas também com o amor que sobra quando a vida se vai. Como em Os Catadores e Eu (2000), Varda colhe os fragmentos de memória e faz com que o espectador seja alguém de escuta. Quando falamos sobre intersubjetividade, a ideia do outro como estranho se dilui quando se permite que ele possa falar e, a partir da troca de saberes, modificar-se. É inevitável não pensarmos em Jacques Lacan e sua definição de intersubjetividade: “Cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, transferência, transferência simbólica – alguma coisa se passa que muda a natureza dos dois seres em presença."
Escutar é colher restos de fala, pausas, hesitações e em Les Veuves de Noirmoutier, escutar é partilhar o peso do luto, porque escutar implica reconhecer que o outro existe. Varda escuta como quem oferece abrigo. Escutar, em sua obra, é resistir à pressa, ao ruído, à indiferença; é uma forma de estar com o outro no tempo que ele precisa. Seus filmes são casas com janelas abertas, onde a câmera não olha de cima, mas de frente, no mesmo nível. Esse é um gesto fílmico muito semelhante ao realizado por Chantal Akerman em seus filmes. A câmera da cineasta indica que não estamos observando a cena através de um buraco de fechadura, como Jean Cocteau descreveu o ato de assistir a um filme. Em vez disso, estamos diante de quem nos fala, em uma posição frontal sem distâncias artificiais. Em outros termos, o espectador é convidado, em seu cinema, a ser alguém ativo, indo no sentido contrário da passividade do cinema narrativo.

Segundo cômodo de Marcher à côté de ses lacetsdans un frigidaire vide, de Chantal Akerman
Em Marcher à côté de ses lacets dans un frigidaire vide (ou Andar ao lado dos próprios cadarços dentro de uma geladeira vazia), Chantal Akerman propõe ao espectador a possibilidade de movimentar-se em torno da instalação. Ou seja, se em seu cinema o espectador permanece sentado, mas se move através da sensação do tempo que passa, aqui a artista oferece a chance de caminhar e, assim, criar sentido a partir das imagens que propõe. As palavras giram em espiral nas telas, e o corpo do espectador é atraído para dentro dessa geladeira vazia, tornando-se o cenário onde se depositam os vestígios de experiências íntimas. Andar ao lado dos próprios cadarços é também tropeçar nos próprios passos e reconhecer-se na banalidade do cotidiano. Ao deslocar o cinema para o espaço da instalação, Akerman expande ainda mais o tempo. É o espectador quem constrói sua própria travessia, tornando-se, de alguma forma, aquilo que ela filmou em Notícias de Casa (1977): um corpo à deriva, cercado por palavras que afetam diretamente quem tem contato com elas.
Mas o cinema de Akerman não se resume às características supramencionadas. Há um elemento inerente às suas narrativas: a relação com sua mãe. Em Jeanne Dielman (1975) ela retrata a rotina de uma viúva judia. Em Os Encontros de Anna (1978) ela encena um acerto de contas com a figura materna. Em Notícias de Casa, lê as cartas que sua mãe lhe enviou, sendo, ao mesmo tempo, enunciadora e destinatária. Na instalação, Akerman se junta à mãe, já bastante debilitada. As duas observam um caderno antigo, escrito em polonês, a língua da avó de Chantal, a língua da infância de sua mãe, agora tropeçando em sua boca frágil. Akerman, que não lê polonês, observa. A tradução é um ato doloroso, por vezes impossível, afinal, é também uma forma de perda. O diário não aparece no filme, já que ele não importa, mas o que ele desencadeia. O que permanece (o que sempre permanece) são os corpos no enquadramento, as pausas, o silêncio entre uma palavra e outra. E o reconhecimento de que certas histórias só podem ser parcialmente contadas.
O resto se perde. E talvez deva ser assim.
Kommentarer