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Formalismo hardcore: uma entrevista com Dennis Cooper

  • Pedro Minet
  • 18 de set.
  • 19 min de leitura

Como introduzir Dennis Cooper? Gostaria de escrever que não é preciso; em outra língua talvez não fosse. Com uma carreira abrangendo mais de meio século, apesar da alcunha de “escritor cult”, é inegavelmente uma das vozes mais essenciais e influentes da literatura norte-americana contemporânea. Especialmente no que se refere ao que se poderia classificar - vulgarmente, e a seu contragosto, talvez - como “literatura queer”. Ainda assim, até hoje, nunca foi traduzido para o português brasileiro. Esta entrevista é a primeira vez. 


dennis cooper
Dennis Cooper / Foto: reprodução

Talvez, se inserido nos círculos online corretos, já tenha enxergado seu nome de relance; talvez lido The Sluts depois da recomendação de um mutual de Twitter, ou um story de Pedro Minet no Instagram. Eu o vislumbrei pela primeira vez aos quinze, assistindo Totally Fucked Up, de Gregg Araki, no iPod Touch, em noite de escola: James Duval, em sua encarnação mais frágil, franzindo o corpo inteiro, aflito, ao ouvir de seu date sobre todo aquele sadomasoquismo e escatologia. Muito do mito de Cooper, até hoje, é inseparável da controvérsia que gerou, nos anos 90, pela violência e sexualidade extremas contidos em seus retratos de dinâmicas íntimas gays. Críticas ferrenhas, tanto de reacionários costumeiros quanto associações LGBT da época - em tempos de representatividade respeitável, em meio ao desterro da crise da AIDS - empurraram o autor para um espaço turvo de “literatura transgressora” que limitaria sua absorção pelo mainstream mas garantiria um público fiel, até obsessivo, que o seguiria para sempre. Em minha opinião suspeita, é o maior escritor vivo. Certamente meu favorito. Qualquer um que me acompanhe em redes sociais, tenha lido uma ou outra entrevista, ou se atente às epígrafes de meu mais recente livro, Superstar, sabe que sua produção é um pilar pessoal. Todo escritor tem sua linhagem. Ano passado, ao ser questionado sobre sua influência, me referi a ele como uma espécie de Deus-Pai (“no sentido de que criou um certo universo, deu nome às coisas, criou imagens às quais pudesse responder e interagir, mexer e reordenar, adicionar (..) um confronto produtivo, de troca e diálogo”) Ele rejeitaria a hipérbole se lesse, eu acho; desde que estabelecemos contato direto em 2022, depois de elogiar em seu blog um texto meu publicado na revista SCAB, cada vez fica mais claro seu desdém por hierarquias. Hoje sou feliz de ser chamado e poder chamá-lo, em pé de igualdade, de “amigo”. But enough about me.


Muito pode ser dito e talvez deva ser contextualizado sobre Cooper. Autor de mais de dez livros – entre eles romances, coletâneas de contos, poesia -, despontou oficialmente em 1989 com Closer, o primeiro de um quinteto intitulado Ciclo George Miles. Batizado em homenagem a um George Miles real, amigo de infância e amante suicidado que permaneceria o objeto supremo de seu olhar por toda produção subsequente. Sua primeira aparição em Closer serve como uma espécie de molde para uma série de rapazes desejados e devastados, cada um de certa forma um reflexo ou refração ou recriação daquele corpo original vislumbrado, amado, machucado, mas nunca totalmente conhecido, muito menos tido, do George original. Frequentemente descrito por críticos como “passivo” pela forma como se deixa conduzir a todo tipo de uso e abuso e descarte, mas não sei se o enxergo assim. Em muitos níveis, sua submissão superficial acaba sendo na verdade uma jornada (maldita) de descoberta radical. Caça ao tesouro. Rumo a uma espécie de buraco — de abjeção, de transcendência, de criação de mito. Seu próprio? Há uma cena em Closer em que tenta enxergar dentro do próprio cu no espelho, “esperando ver o que deixa os homens tão malucos”. Ele o compara a uma de suas atrações favoritas da Disneyland. Os cinco livros que compõem o Ciclo são esquematizados como um corpo, o corpo de George, cada volume análogo a uma parte distinta (“coração”, “virilha”, “mente”, etc.). Versões suas com nomes diferentes povoam versões diferentes daquele universo inicial até que retorna em Period (o quinto e último volume, o “cadáver” do Ciclo), dizendo que agora consegue viajar através de espelhos. Talvez fosse disso que estivesse atrás. Mas é só minha leitura. Minha inserção. Como saber, ao certo? Ainda que a voz de George - e de tantos meninos como ele - se intrometa vez ou outra, a perspectiva principal da literatura de Cooper constantemente parte da perspectiva dos algozes e amantes sobre ele debruçados, como se montando e desmontando um quebra-cabeça à sua imagem, condenado a permanecer incompleto. É uma negociação profundamente complexa, cirúrgica, de obsessão, de visão, que assumidamente indicia – redimindo, talvez - o próprio autor.


Em seu livro mais popular, The Sluts, vencedor do Prix Sade, esse dispositivo se insere na lógica esquizofrênica da Internet. Toda a narrativa se desenvolve por dentro de fóruns, trocas de e-mail, seções de comentários, no cenário digital bruto do início dos anos 2000. Começando num site em que os usuários escrevem avaliações de acompanhantes masculinos, pouco a pouco as inúmeras histórias acerca de um michê específico, “Brad”, se tornam mais e mais contraditórias e violentas, desencadeando um mistério aterrador que se revira e distorce até um fim impiedosamente vago.


Apesar da associação principal com a literatura, Cooper é e sempre foi, acima de tudo, multidisciplinar. Despontando na cena punk nova-iorquina dos anos 70 como editor da zine Little Caesar, que em seus seis anos de vida recebeu contribuições variadas de ícones como Warhol, Nico, Lou Reed, Johnny Rotten, Leif Garrett, e muitos outros (além de se destrinchar eventualmente em selo independente, publicando livros de poesia de Eileen Myles, Tom Clark, Amy Gerstler, etc.), sua produção desde então inclui filmes, instalações, performance, graphic novels, música, jornalismo e experimentos com arte digital. Em meados da década passada, ele chegou a publicar, online, uma trilogia de livros inteiramente compostos por GIFs. Em 2024, publicou uma nova coletânea de contos, Flunker, e atualmente está se deslocando de mostra a mostra para exibir sua terceira direção cinematográfica, em colaboração com Zac Farley, Room Temperature. Conversamos sobre o filme, e muito mais, a seguir:


Pedro Minet: Venho acompanhando o lançamento de Room Temperature. Tem sido exibido em vários lugares, não é? Mal posso esperar para ver. Como tem sido a reação até então? 


Dennis Cooper: Tem ido muito bem. É um filme um tanto estranho e único. Demanda que você preste bastante atenção e desvende-o por conta própria. A maioria das pessoas que já assistiu tem embarcado nisso, mas tem sempre gente que quer que filmes lhe digam o que sentir, sem ter que fazer pensar. Então não é a praia de todo mundo. Como esperávamos. Mas minha obra sempre foi assim, então não é problema. 


Minet: Pode me contar um pouco sobre o filme? Sei que tem a ver com casas mal-assombradas, que são uma fixação recorrente sua. Vi umas imagens bem sangrentas circulando pelas redes sociais, que me fazem supor que foge um pouco da atmosfera mais austera de Permanent Green Light. Mas posso estar errado.


DC: É mais desvairado que Permanent Green Light, mas austero, ainda, de certa forma. Ou talvez um jeito melhor de descrever seja introvertido, contido, ainda. Tem mais comédia, o que muda as coisas. Sim, é sobre uma família que constrói uma atração de casa mal-assombrada no próprio lar. E isso leva a outras situações, a maioria nada boa.


Minet: Lembro que quando começou a se aventurar no cinema, dizia estar insatisfeito com a literatura como mídia e buscando novas expressões. Desde então, no entanto, você publicou dois livros, I Wished e, mais recentemente, Flunker. A experiência de filmar transformou, talvez até revitalizou, sua relação com a escrita? Sei que sempre disse que sua escrita era mais informada por uma filosofia estética de cinema (como a de Bresson, por ex.) do que literatura propriamente. Me pergunto se ter dirigido, agora, impactou essa percepção.


DC: Bem, transformou minha relação com a escrita no sentido de que só tenho mesmo interesse em dirigir filmes no momento. Todas as minhas ideias estão naturalmente tendendo para o cinema e não para a ficção. Amo escrever ficção, principalmente romances, mas escrevi desde novo e acho que agora entendo o que posso e não posso fazer, o que torna menos estimulante. Cinema ainda é território inexplorado, e sinto que estou só começando a tatear as possibilidades. Sempre me atraí por grandes desafios, como artista, coisas que não tenho certeza se realmente consigo realizar. É o que me faz querer tentar. Não tenho tido uma ideia para um romance que pareça difícil o suficiente para querer escrever desde I Wished. Provavelmente vou, de novo, mas agora cinema é o espaço convidativo, assustador, onde quero trabalhar. 


Minet: Esboçando algo no momento? 


DC: Previsível: escrevendo o roteiro para meu próximo filme com o Zac Farley. Não quero falar muito, mas os personagens principais são um ventríloquo de doze anos e um cara que toma LSD e não sabe mais quem é.


Minet: Sinto que já contou seu mito de origem muitas vezes – sonhando em ser Rimbaud na adolescência, reescrevendo 120 Dias de Sodoma estrelando seus colegas de turma, aquele professor na faculdade te mandando largar o curso para se tornar um escritor de verdade -, então não vou reciclar. Queria atravessar alguns livros específicos para traçar um panorama geral da sua produção desde o início e entrar em aspectos mais específicos conforme seguimos. Você começou bem envolvido na cena de poesia; sua primeira publicação, Tenderness of the Wolves, era principalmente uma coletânea de poemas. Desde então, lançou algumas outras – The Dream Police sendo a mais abrangente -, mas prosa rapidamente se tornou seu meio principal. Como foi essa transição? Sempre soube que queria escrever romances, ou foi uma descoberta gradual? Considera seu “cérebro de poesia” e “cérebro de prosa” como entidades distintas ou estão constantemente informando e contaminando uma à outra?


DC: Sempre escrevi poesia e contos desde criança. Aos quinze, decidi que queria ser romancista e escrever romances experimentais em particular. Então o primeiro desejo foi esse, mas minha poesia foi melhorando mais rápido, enquanto minha prosa era péssima por muito tempo. Comecei a publicar meus poemas, primeiro, enquanto trabalhava nela em segredo. Em certo momento, finalmente comecei a ficar satisfeito, ao mesmo tempo em que minha poesia empacava. Percebi que não tinha o que era preciso para ser o poeta que queria ser, então deixei para trás. Tendo me inserido na ficção pela poesia e literatura experimental, nunca aprendi e nem nunca quis aprender a escrever romances de um jeito “normal”. Acho que quando minha prosa fica emotiva, provavelmente é o que resta do poeta em mim. Associo escrever poesia com um excesso de emoção.


Minet: Depois de Tenderness of the Wolves, antes de deslanchar de vez com o Ciclo George Miles, veio My Mark, uma plaquete, que depois foi reaproveitada para formar a novela Safe. Que certamente tem uma qualidade crua de “primeira obra”, mas já traz muito daquilo que permaneceria como sua marca registrada. A precisão transcendental Bressoniana da prosa, a forma como estrutura a linguagem de modo que uma frase aparentemente muito comum à primeira vista se revela como uma espécie de milagre elusivo quando se chega ao fim. O sequenciamento espiralado, cirúrgico das cenas e, claro, todo sexo, violência e aqueles twinks vagantes, por muito pouco inteligíveis. Sinto que você é o tipo de escritor que nunca tentou não ser obsessivo sobre os símbolos pelos quais é obcecado. Como um pintor de natureza-morta: sempre encontrando novas formas de construir acerca de objetos semelhantes. Já tentou se interrogar sobre isso? Ou parece irrelevante? E como é essa relação para você em termos de forma vs. conteúdo? Qual tende a vir primeiro, tomar precedência? Como então integrar os dois, costurá-los em um só corpo?


DC: Acho que minha escrita é o interrogatório. É onde tento decifrar minhas obsessões e a mim mesmo. Não que já tenha conseguido, claro. Senão provavelmente teria parado de escrever. Para mim, o conteúdo serve à forma. O conteúdo vem primeiro no sentido de que é o que me dá o ímpeto de escrever, mas, escrevendo, se torna algo como uma força subterrânea. Preenche a forma com significado, e estou sempre atrelado a ele, mas seu poder sobre mim é tal que não preciso pensar sobre. Tudo em que penso é em como representá-lo e moldá-lo.


Minet: Closer foi o primeiro livro que você publicou pela Grove Press; ele marca o início do Ciclo George Miles e, de várias formas, funciona como uma síntese dele. Poderia fazer uma entrevista inteira só sobre esse livro. Provavelmente é o meu romance favorito de todos os tempos, e já discutimos alguns aspectos dele antes. Ele traz a estreia literária de George Miles, em seu corpo original, de menino-de-verdade, antes de ser desmembrado, refratado e reaproveitado em tantas iterações subsequentes. Você disse que o Ciclo é como um corpo, o corpo de George, com cada volume sendo uma parte dele. Closer é o “corpo original”. A estrutura do romance funciona de forma que cada capítulo é narrado a partir da perspectiva de um personagem diferente à medida que cruza seu caminho. Ele começando como o projeto artístico de um garoto punk, então lentamente tateando Um Quarto Só Seu só para se propelir a mutilação brutal e acabar em escuridão eterna na cama de outro garoto punk. Meu Deus, tem tanta coisa que poderia perguntar. Acho que gostaria de saber mais a fundo sobre como concebeu esse livro, se puder lembrar. A estrutura, essa rotação de personagens, de vozes. Há tantos elementos específicos, como o fato de cada um dos garotos que atravessam George ter um campo artístico com o qual mexe (um com desenho, outro com cinema, outro com música), a dicotomia entre os dois twinks David e George, o diálogo de Philippe com a Morte. Foi um processo longo até chegar ao resultado final? E você já tinha o resto do Ciclo totalmente planejado nesse momento, ou mais aquele esquema geral de “corpo”?


DC: O processo de desenvolver e escrever Closer foi muito longo e complicado; não tem como destrinchar totalmente. Não me lembro de boa parte. Estava a todo tempo arquitetando e delineando o Ciclo; não sabia de início quantos livros conteria, mas meu foco era na estrutura e construção geral. Tecnicamente, planejava o que queria fazer desde os quinze anos, mas o que queria fazer mudou várias vezes até finamente começar. Closer foi particularmente difícil e demorado para desvendar porque, na estrutura meio complicada do Ciclo, tinha que ser seu mundo. Um dos princípios estruturais é que o Ciclo é um corpo único sendo gradualmente destruído e revivido ao longo do caminho. Então Closer tinha que conter tudo que estaria nos outros livros; decidi não me permitir adicionar nada que não estivesse representado ou referenciado nele. Ao mesmo tempo, a estrutura era aberta o suficiente para que pudesse incorporar, enquanto escrevia cada romance, o que então me interessasse. Difícil explicar. Havia muitos e muitos esquemas e coisas que fiz para trabalhar a partir. Closer era o mundo; Frisk, o libido; Try, o coração; Guide, a mente; e Period, o mundo após ser quase que destruído. Então, sim, o Ciclo estava planejado num nível fundamental quando escrevi Closer. Não quer dizer que cada um dos livros não tenha sido uma surpresa para mim. 


Minet: A figura de George assombra a sua escrita como sua musa suprema. Não apenas o George real, embora tenha sido muito real (como já fez questão de lembrar aos leitores várias vezes ao longo dos anos, mais recentemente em I Wished), mas sua metamorfose em personagem, arquétipo, conceito, verbo, sintaxe, tudo-como-nada-como-tudo. Essas negociações entre sua carne e seu pós-vida-como-arte se refletem em tanto das dinâmicas entre os meninos do Ciclo e os homens que os observam, desejam, amam, matam, escrevem. É um jogo do qual você, como autor (e narrador), participa e no qual se implica de forma tão consciente, tão nua, que ao fim parece redentor. Ainda que nunca necessariamente resolvido. Gostaria que falasse sobre esse rapport e como sente que se desenvolveu ao longo dos anos. Essas dinâmicas de escritor vs. musa, “Dennis” vs. “George”, objetificação, idealização; seu papel nelas e o que sente que é o seu “objetivo” ou “missão”, se é que se pode chamar assim, nessa exploração. Parece estar na raiz da perspectiva da sua obra.


DC: Por mais que eu seja um formalista hardcore, também sou um escritor muito intuitivo. Nunca tive uma missão ou objetivo ou nada do tipo além de tentar fazer cada um de meus romances especial e, espero, digno de existir. Minha obra é muito enfocada porque minha inspiração, como artista, é bem particular. Ainda estou tentando decifrar as coisas que estava tentando decifrar quando comecei a escrever. Me compele escrever sobre o que eu escrevo. Honestamente não sei por que. Então realmente não penso em escritor vs. musa ou sobre idealização e tudo mais. Quando escrevo um romance, estou tentando decifrar a mim mesmo e minhas obsessões e a forma do romance de um jeito novo que chegue ao cerne de todas essas questões. Mas não tenho nenhum princípio me guiando. Ao menos que eu tenha consciência. 


Minet: Depois de Closer veio Frisk, com sua brutalidade bem mais escancarada e fantástica, que trouxe muita controvérsia na época. Tempos divertidos para escritores gays “transgressores”, visto que saiu bem perto de American Psycho e Fight Club. É um dos seus livros mais famosos. Leva aquelas questões de fetichismo e faz-de-conta de Closer a um lugar simultaneamente mais obscuro e doce. Como era, então, seu processo ao escrever sexo e violência extremos como os do livro? E como evoluiu? Li que você deliberadamente parava de digitar sempre que ficava excitado ou algo assim. Diferente de alguém como Guyotat ou Acker, que sempre falavam sobre se masturbar enquanto escreviam. É tudo uma questão de linguagem para você? Já criticou obras como as de Von Trier, Salò de Pasolini, etc., pela forma como tratam esse tipo de conteúdo, então parece que tem um certo código acerca da coisa.


DC: Quando escrevo sobre essas coisas estou tentando dar a elas seu poder total, ou pelo menos o poder que têm sobre mim. Ao mesmo tempo, estou pensando em que tipo de representação vai passar esse poder para o leitor sem agredi-lo ou ser sádico com ele de alguma forma. Penso muito sobre dinâmicas de poder quando escrevo. Sou anarquista então é algo em que penso o tempo todo e sobre qual tento ser responsável na minha vida até em níveis bem básicos. Meu ofício não é masturbatório porque penso que levaria a autoindulgência e interferiria em meu interesse de me comunicar de forma meticulosa. Quando era mais novo estudei como coisas impactantes eram geralmente representadas em livros e filmes para ver que métodos permitiam um espectador de adentrá-las emocional ou intelectualmente e quais as usavam como desculpa para representar interpretações psicológicas e quais só resultavam em choque barato. E desenvolvi uma forma de representá-las que parecia tanto justa quanto irrestrita para mim. Ainda não funciona com a maioria das pessoas porque não acho que haja algo que possa prevenir quem não queira lidar com essas coisas de se chocar.


Minet: Frisk recebeu muitas críticas na época de certos setores de ativistas gays e gatekeepers da literatura. Desde o início de sua carreira você foi bem firme em se distanciar da ideia de “literatura gay” ou “arte gay” ou “comunidade gay” ou “o-que-seja gay”. Contra o que estava lutando ao rejeitar esses rótulos e a politização direta da sua obra?


DC: Não tenho interesse em identidade coletiva. Acho que generalizar nunca leva à verdade. Penso que ver indivíduos como exemplos de algum agrupamento formado pelas crenças ou identidades que têm em comum com outros que parecem, de alguma maneira, semelhantes a eles resulta em raciocínios e interpretações preguiçosos. Respeito quem deriva força de, digamos, ser gay e viver e fazer sua obra sob esse rótulo. Eu pessoalmente só não acho que ser gay seja mais importante que quaisquer outras qualidades que tenho. 


Minet: O terceiro livro do Cycle é Try, o “coração”, mas vou pular. Um pouco emotivo demais para mim. Rumo a Guide, um dos meus favoritos. A “mente”. Que foi escrito na época em que você estava trabalhando bastante como jornalista para revistas como a SPIN, entrevistando gente bem lendária – Courtney Love, Leo DiCaprio, Brad Renfro, Christian Bale, Nan Goldin, Stephen Malkmus, Ryu Murakami –, escrevendo obituários para River Phoenix, Burroughs, etc. Isso é diretamente integrado ao romance, com todo um subplot sobre você entrevistando aquele michê-com-banda enfermo para a SPIN, e o livro inteiro costurado com uma lógica maníaca de cultura pop. Tem sua versão infame do Blur, a cena techno dos anos 90, letras de música constantemente se intrometendo na narração, aquele ritmo vertiginoso Los Angelino. Tipo um Closer doido de estimulante, ou uma música do Guided by Voices. Logo cedo na sua carreira você teve experiência conduzindo uma zine, Little Caesar, que também contou com um monte de ícones culturais da época. Até Warhol. De certa forma, seu blog de longa data também funciona como uma zine, com colaborações constantes de usuários, posts diários sobre artistas e atuais obsessões. Como enxerga esse lado da sua produção? Parece algo separado da obra, mais uma coisa social, de construção de comunidade, ritual diário, ou vem ajudando ao longo do tempo a organizar suas ideias sobre a arte em que esteja trabalhando no momento? Ah, e como foi com o Brad Renfro? Sou meio obcecado por ele.


DC: Sim, estar fazendo tanto jornalismo na época com certeza alimentou o que Guide acabou se tornando. Um aspecto forte meu é amar fazer curadoria. Tive a Little Caesar Press, fui curador de uma série grande de leituras em Los Angeles no início dos anos 80, editei um selo literário chamado Little House on the Bowery por um tempo, e fiz bastante curadoria de exibições em galerias e museus. O blog é parte desse impulso. Gosto de chamar atenção para arte e coisas que acho que podem inspirar os outros. E gosto muito de ter uma dinâmica em que possa apoiar artistas mais jovens. Vejo como separado do meu trabalho como artista. O Brad Renfro foi o famoso mais perturbado que entrevistei. Muito educado, mas muito retraído. Claramente não queria estar ali. Ao mesmo tempo, foi muito honesto, a ponto de me contar coisas sobre si que realmente não deveria ter contado. Chegou a um ponto em que os empresários dele me ameaçaram para que não publicasse muito do me tinha me dito, ou processariam a revista.


Minet: O Ciclo terminou na virada do milênio, abrindo caminho para obras mais individuais. My Loose Thread, The Sluts, God Jr., The Marbled Swarm. The Sluts, em particular, parece ter se consolidado como uma espécie de marco. Recentemente, tem circulado bastante em certas bolhas online aqui do Brasil. Sinto que foi uma obra profética sobre muito de como negociamos identidade, verdade, desejo e violência na era digital. A leitura do livro funciona um pouco como um doomscroll. Ao mesmo tempo, é claramente de seu tempo, com os fóruns e esse labirinto de terror sexual gay pré-Grindr, pós-AIDS, pré-PrEP. Pode falar sobre onde estava sua cabeça na época em que o escreveu? Como surgiu o conceito, aonde queria chegar com ele, e o quão satisfeito fica com sua recepção contínua?


DC: Passei uns dez anos escrevendo, de forma intermitente, The Sluts. Uma versão inicial, bem diferente dele ia ser o quarto romance do Ciclo, mas não consegui fazer funcionar. Originalmente se dava todo em cartas e fax e classificados e coisas do tipo. Comecei a escrever antes de a Internet existir. Quando ela aconteceu e, principalmente, quando sites para avaliar acompanhantes e fóruns surgiram, finalmente foi possível realizar minhas intenções. Basicamente, estava obcecado com o que acontecia nesses portais, como os caras estavam transformando esses michês em seus ideais perfeitos de michê a níveis implausíveis e afirmando coisas que eram obviamente mentiras, mas que deixavam todos nesses sites muito excitados e destilando as próprias fantasias. Então só peguei aquele universo e tornei ainda mais ilusório e insano do que era realmente. Fico surpreso e feliz que The Sluts tenha uma vida tão longa e duradoura. Honestamente, não é um dos meus romances favoritos, porque é um ato de mímica e de distorcer vozes e estruturas que preexistiam à escrita, e tenho mais interesse em inventar coisas originais. Mas, sabe, fico grato e me sinto sortudo de que tenha se tornado tão “algo”. 


Minet: Ano passado concluí minha missão pessoal de ler todo o seu catálogo então publicado. O último que li foi God Jr. Quero dar um destaque a ele, porque acho que muitas vezes fica ofuscado na sua bibliografia como uma espécie de romance “convencional”. Quase como um momento em que você “se vendeu”. Por não conter, presumo, o conteúdo sexual violento de costume. O que não faz sentido algum; para mim é uma de suas grandes obras-primas, e sinto que tem todas suas marcas registradas temáticas e formais. Todo o enredo gira em torno de um twink morto, sabe? Brincadeiras à parte, não é sobre isso, mesmo. É tudo sobre o escrever em torno da ausência, construir ruínas, lidar no Nada. E há espirais de Nada ali que me lembram muito a estrutura de Period, também um de meus favoritos. Um corpo em desaparecimento. Bem Blanchot. O filho morto, Nintendo e Deus formando uma espécie de santíssima trindade de Nada. Maluquice falar assim? Quando conversei contigo sobre o livro pela primeira vez, me disse que a última parte dele, que se passa dentro de um videogame, era a sua coisa favorita que já tinha escrito. E realmente é enfeitiçante. Foi um processo muito cerebral, a construção desse videogame (que sei que é inspirado em jogos como Banjo Kazooie e Eternal Darkness), ou mais intuitivo? Chegou a fazer um estudo da mídia? Estava jogando muito naquela época?


DC: Tenho orgulho desse livro. Sim, estava jogando intensamente naquela época, e fascinado com a forma como as narrativas/fios condutores dos jogos eram construídos – o quão abertos eram, ou melhor, como conseguiam fazer com que suas construções parecessem abertas ao jogador ao mesmo tempo em que eram altamente estruturadas e direcionadas. Queria aplicar aquela trajetória à prosa e tentar fazer a ficção funcionar da mesma forma. E tinha interesse em escrever um romance sem as marcas registradas que acham que minha obra sempre tem. Acho que a influência da estrutura interna dos videogames tem subsistido em algum nível com todos os romances que escrevi desde então.


Minet: De certa forma, God Jr. e The Sluts, que foram lançados bem próximos um do outro, parecem intimamente conectados. Ambos imersos nessa linguagem midiática do novo milênio, navegando por ela como que pelo Submundo, escrevendo ao redor da Morte dentro dela. Um extremamente explícito e cáustico, o outro mais taciturno e dissociado. Como espelhos, David vs. George em Closer. Você pensa no seu trabalho em termos de períodos ou fases, com linhas e texturas similares? Obviamente, tem o Ciclo George Miles, a trilogia de GIFs do Zac, agora os filmes. Ou é algo sobre qual prefere não estar tão consciente?


DC: Penso no Ciclo, os romances-GIF, e os filmes como sendo projetos específicos inter-relacionados. Mas, não, com os cinco romances que escrevi desde o Ciclo, enxerguei e enxergo-os como individuais. Estava tentando fazer algo novo e diferente do que antes com cada um deles.


Minet: Esse último livro, Flunker, uma coletânea de contos, foi lançado com a Amphetamine Sulphate, uma editora independente incrível do incrível Philip Best. Você é há muito tempo um dos promotores e apoiadores mais fervorosos de publicação independente, sempre por dentro de tudo de interessante acontecendo e sendo publicado. Até lembro que foi um dos primeiros defensores da Alt Lit no início da década passada. Ainda assim, por anos, seus livros foram lançados por editoras maiores. Como foi decidir seguir com um selo indie nessa altura da carreira? Como foi a experiência? Editoras independentes são o futuro?


DC: Sim, sou um grande fã de publicação independente e fico deslumbrado com a quantidade de pequenas editoras que existem atualmente e o quão inovadores e ousados são seus livros. É super revigorante. A experiência com a Amphetamine Sulphate foi ótima. Eu pensava no Flunker como uma espécie de livro de fragmentos que provavelmente seria mais de interesse para quem já conhecesse e curtisse meu trabalho. Então a AS pareceu um bom caminho. Confio que vou seguir publicando com editoras independentes daqui para frente. São o futuro, é. E são o underground, o que é interessante porque tem toda uma renascença bastante agitada de ficção desviante rolando nos EUA, e os árbitros literários mainstream por ora parecem alheios. Talvez desconfiados. É um sinal de que algo importante está acontecendo, eu acho.


Minet: Conte-me sobre Flunker. Não li ainda mas soube que é como um B-side de material não lançado previamente. Ou tem também coisa nova nele?


DC: A maior parte da produção em Flunker é mais antiga. Algumas coisas originalmente escrevi para serem parte de romances (especialmente I Wished e The Marbled Swarm) mas não funcionaram, e retornei e finalizei e poli. Todos exceto dois dos contos são novos, ao menos no sentido de que não estavam concluídos até compor esse livro.


Minet: OK, agora umas perguntas bate-bola para terminar. Primeira: Quais são alguns de seus livros, filmes, e álbuns favoritos do ano até agora?


DC: Tem muitos, mas vou tentar me ater a alguns poucos. Livros: Mark Doten 'Whites', sasha hawkins 'FOR DISOBEYING', Charlotte Northall 'Practicing Dying', Laura Vasquez 'The Endless Week'. Filmes: Harmony Korine 'Baby Invasion', Julian Castronovo 'Debut', Mona Convert 'UN PAYS EN FLAMMES'. Álbums: Destroyer 'DAN’S BOOGIE', Guided by Voices 'UNIVERSE ROOM', Backxwash 'ONLY DUST REMAINS'.


Minet: Qual música do Guided by Voices os leitores deveriam escutar enquanto leem esta entrevista?


DC: 'Redmen and their Wives'


Minet: Como você se sente sobre o Timothée Chalamet?


DC: Acho que ele é um ator imensamente limitado e superficial que bizarramente parece ter conseguido convencer gente geralmente inteligente de que tem muito talento.


Minet: Qual sua atração de parque de diversões favorita?


DC: Mr. Toad’s Wild Ride, na Disneyland.


Minet: Fuck, marry, kill: Antoine Monnier, Pierre Buisson, Pierre Clémenti.


DC: Fuck Antoine Monnier, marry Pierre Clémenti, kill Pierre Buisson.


Minet: E qual dos seus livros gostaria que eu traduzisse primeiro? ;) 


DC: Aquele que quiser. Sério.

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