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Exumando Meninos Mortos: a autópsia de Pedro Minet

  • João Matheus Marques
  • 30 de mai.
  • 11 min de leitura

Atualizado: 6 de jun.

Mas por que chora? Ela, beleza perfeita

Que o ser humano a seus pés poria vencido,

Que secreto mal seu rijo corpo sujeita?

— Ela chora, insensato, por já ter vivido!

E porque vive! Mas o que ela mais deplora,

O que faz com que trema até os joelhos, atroz,

É que ainda terá de seguir vida afora!

Amanhã e depois e sempre! — como nós!


“A Máscara”, Charles Baudelaire.

  

Assim como um colecionista em um antiquário, daqueles repletos de cerâmicas e mesas de mogno, abajures róseos e querubins dourados, o carioca Pedro Minet reúne sua coleção de meninos empalhados, ao lado de applejacks, twilight sparkles, músicas de Ichiko Aoba e mensagens não respondidas. Seus garotos – que você veria perambulando pelas esquinas, com meias altas, joelhos ralados e corações partidos – giram em círculos, transeuntes fantasmas das grandes cidades, nunca imóveis; ligando a seta na Via Crucis entre o amor e a morte.


Tentar definir Coleção de Meninos Mortos, primeiro livro de poesia do autor, publicado pela editora Urutau em abril de 2023, não é uma tarefa fácil. Em 30 poemas, o ato de flanar exprime-se como a liga fatal que guia os enfants terribles pela cruzada dos cemitérios e glory holes, da metrópole ao Cristo Redentor. Um garoto leva um ghosting, um grupo de adolescentes comete um assassinato brutal, dois amigos se aventuram com uma banda e dois amantes assistem Inuyasha pela tela do celular. Nestes relances, move-se o mundo que sangra, lisérgico, as páginas de uma juventude em combustão. 


Os temas giram em torno do imaginário queer e das dinâmicas tecnológicas; do fluxo caótico do Rio de Janeiro e de seus becos, lojas e praias. As mudanças na cidade são traçadas em paralelo com relatos que parecem rasgados de um diário: Em Rio 2016, Rimbaud em Charleville e Rio Sul Shopping Center, o apego aos comércios, ao barulho, aos manequins e às estampas de Looney Toones nas camisetas imprimem nas situações corriqueiras uma essência crônica e quase nostálgica; o cotidiano maculado é a condição seminal de sua poética, e no que se esconde por detrás do véu dos ambientes conhecidos – sejam eles digitais, físicos ou inconscientes –  repousa uma inquietação familiar. 


coleção de meninos mortos pedro minet

Imagem/Reprodução: Editora Urutau, 2023. 


Não há, nos versos de Minet, um “decifra-me ou devoro-te” irremissível. Neste livro, devorar é imparcial. Todos são consumidos na mesma medida em que consomem, e os dentes na pele são como Ágora para meninos perdidos, a esfera comum do desajuste. As palavras ardem na garganta ao serem lidas em voz alta e a inocência maculada é o palanque para a risível, cruel e abjeta solitude daqueles que não são, de forma alguma, anônimos. O verbo que sangra não faz distinção e a impenetrabilidade dos corpos resulta em uma espécie de identificação que é margeada pela incompreensão de si e do que lhe aguarda. É a ânsia de se ver finalmente, representado, em dor e glória; a infante urgência da fase do espelho. Talvez você use para alguma coisa, faça algo grande / fique famoso, escreva um livro […] 


Como Conchita, em Este Obscuro Objeto de Desejo (1977, dir. Luís Buñuel), seus Meninos mudam de feições, nomes, modos e desejos, mas conservam em seus vícios a mesma esperança de mártir, uma símile e unária identidade remexida no sangue e na saliva. Bonecos assombrados, malignos, reanimados. Em seus poemas, o que veleja na veia cava até o coração é ambrosia, dormente na língua e ácida no estômago.  


Com referências à Rimbaud, Catherine Breillat, My Little Pony, animes dos anos 90-2000, a extinta Forever 21, Final Fantasy VIII e Jean Genet, Pedro concebe uma egrégia para ícones clássicos e populares. Seu último poema, Tomie, é uma evocação direta ao mangá homônimo de Junji Ito, em que uma colegial de beleza incomparável é desmembrada e assassinada ao longo de várias histórias. No conto, o embotamento da noção de vítima fica evidente quando descobre-se que Tomie é, na verdade, um ser demoníaco que reproduz-se multiplicando-se infinitamente após a morte, manipulando homens e mulheres ao seu redor na base de uma longa cadeia. Um similar modo de agir parece margear os garotos da Coleção: cruéis e dóceis ao mesmo tempo, submissos e violentos. Como diz Matheus Ultra no prefácio da obra, essa não é uma história de sujeitos, mas de sujeitados, e as cantigas são entoadas como a fina voz do objeto desejado que, dessa vez, revida o olhar para o escopofílico leitor. 


Você gosta de homens, menino? Não, senhor. Eles é que gostam de mim - “Dejanira”, Pedro Minet

Busca-se o desejo, a aprovação de outro alguém, na mesma medida em que afasta-se dele, temeroso. O leitor se fantasia e inicia um jogo que é como um peep show pela webcam, coloca uma máscara e mistura fragrâncias como um mágico numa tentativa de imersão; um olho incógnito pisca do outro lado da tela, entre as guias abertas e versos na folha, e te saúda em reconhecimento. Ler Minet é como ser voyeur; espiar pelo buraquinho da fechadura ou pela janela do projetor enquanto bacantes preparam-se para o festim. Na sua poética, o Rio de Janeiro torna-se mais do que um cartão postal. É Breton andando por Paris em Nadja; é passear com adolescentes sem hora para voltar para casa, que te contam histórias do que aprenderam nas noites sem sono, e é questionar, por bem ou por mal, se o que dizem é verdade. 


agnus dei francisco de zurbaran

Imagem/Reprodução: “Agnus Dei”, Francisco de Zurbarán, 1635. Óleo sobre tela. 


[…]

de alguma forma você se aproveita 

de mim, tem algo de manipulador,

quase vingativo 

na sua submissão, abjeção, vulnerabilidade 

extrema, ridícula de 

vítima indefesa, gazela,

veado, ovelhinha

bem embaixo, lá no fundo, na base 

da cadeia alimentar 

fungo

parasita…


“O Príncipe”, Pedro Minet


O que é desejado pode ser tocado, mas permanece sobretudo inexplorado. Um enigma que não hesita em devorar. Como em Hamlet, “queria tocar as minhas cordas, dar aparência de conhecer minhas claves, queria extrair o cerne do meu mistério […] há muita música, há um timbre primoroso nesse pequeno instrumento, mas você é incapaz de fazê-lo falar”, tal qual Le Baphomet, de Peter Klossowski, o corpo permaneceu inexplorável. Mesmo dedilhando, não há quem toque as cifras de seus Meninos congelados, sacrificados e ao mesmo tempo – mas não beatificamente – santificados. 


Há quem ouça com doçura, sob o ruído da Sephora no Shopping Rio Sul e o chicotear das páginas, sua lira de carne tocar, e aqueles que, além de ouvir, acrescem ao canto – admitem, como que em cada história uma parte singela da sua –, veem-se refletidos na vitrine espelhada dos rostos de seus personagens. Pensando nisso, convidei-o para uma entrevista, uma espécie de autópsia do autor, na qual conversamos sobre a Coleção e sobre Superstar, o retorno de Minet e seu primeiro livro em prosa. 


[Matheus] A Coleção reúne poemas antigos, datados de 2015, 2016 e assim por diante. Há quanto tempo você coleciona seus meninos e como surgiu a ideia de reuni-los em um conjunto?


[Minet] Há muito tempo, quando muito do que acabou se tornando o livro ainda não fora escrito, tive a ideia de que meu primeiro livro se chamaria Coleção de Meninos Mortos. Parecia um título capaz de sintetizar toda minha produção; passada, presente, futura. De forma que se acabasse sendo meu único livro, como na época suspeitava que poderia ser, daria conta. Demoraram anos até sentir que estava pronto para realmente reunir uma obra, mas em meados de 2022, decidi que era hora. Tinha quase uma década de material guardado, então fiz um trabalho muito rigoroso e extenso de escavar - como se escavaria uma cova, uma cova de menino - todo esse arquivo. E daí remanejar tudo, produzir coisa ou outra nova também, para amarrar tudo. Nessa “escavação”, foquei muito intensamente na minha produção da adolescência, especialmente de épocas quando estive mais próximo de algo como morte. Minha temporada no inferno, fogo andando comigo como foi com Rimbaud e Laura. Quando tudo era abismo. Por isso, como já foi notado por outras pessoas que escreveram sobre o livro, a quantidade de poemas datados de 2015, 2016… Principalmente 2015. Todo um ímpeto de resgatar esse menino, de redimir de alguma forma toda aquela morte, aquela destruição, aquela incomunicabilidade (não por nada a referência a Antonioni logo no primeiro texto), de fazê-lo finalmente ser ouvido e visto. Somada a uma ambivalência sobre o poder real de redenção que isso traria. Porque é uma segunda morte se tornar livro. Será que tudo é morte? Enfim. Alguns desses poemas já eram poemas, outros recortes de diários, anotações soltas, páginas de caderno escolar. Uns alterei nada, ou muito pouco, outros foram extensamente retrabalhados e transformados. Um texto como “Rio 2016”, por exemplo, é mais “baseado” em meus diários daquela época do que um diário literal em si. Há essa ficção, esse artifício na construção do livro: não necessariamente porque um texto está datado de certa época quer dizer que ele é realmente daquela época. Mas ele existe naquela linha de tempo, naquele estado de espírito, naquelas memórias, naquela voz, naquele menino. Como uma daquelas bonecas American Girl, cada uma de um período histórico. Menino morto das Olimpíadas de 2016, menino morto-Rimbaud desamparado no Botafogo Praia Shopping em 2015, menino morto-Tomie no Japão dos anos 80, etc. Todos na estante. Na vitrine.


[Matheus] O que o Minet da Coleção diria para o Minet de Superstar? Os Meninos e os medos ainda são os mesmos?


[Minet] Acho que a era do Superstar acabou de começar, o livro nem foi lançado ainda, então talvez seja cedo até para dizer quem é o Minet do Superstar. Sinto que ainda estou com um pé no “menino morto”. O Minet da Coleção também é o Minet de tudo que aconteceu depois que ele foi lançado e o livro foi tomando vida (ou morte) própria por aí. Deve acontecer algo parecido com o Superstar. Diria que os meninos não são os mesmos, ou, se forem, estão em outro estágio, outro estado (quase de matéria, mesmo). Os meninos do Coleção tinham algo mais de etéreo, de espectral, uma certa delicadeza e fragilidade, algo mais arquetípico de vítima, presa, objeto. Os meninos do Superstar são bem mais brutais e brutos, mais contraditórios, mais ácidos, mais encorpados mesmo. Ainda entranhados em jogos semelhantes de violência, desejo, objetificação, mas mais conscientes e ambivalentes sobre os papéis que exercem neles e por que exercem. Sangram mais, mas brilham mais também. Acho que a Coleção tinha muito algo de querer dar uma linguagem, por mais abjeta e fragmentada que fosse, a um corpo que parecia interditado dela. Já o Superstar se debruça muito sobre os limites dessa linguagem, desse encontro dela com o corpo; ele existe muito no limite, nesse momento do choque, o momento mesmo da vida ameaçando virar morte, pr’além da autópsia/necromancia da Coleção. Talvez eu esteja quase fazendo um caminho inverso na minha carreira, como se estivesse rebobinando, como em Irreversível. Começando no Submundo, e pouco a pouco subindo… Talvez o próximo seja meu Lust for Life. Espero que não. Sobre os medos: diria que mudaram também. Talvez tenha mais, agora, como menino crescendo, mesmo: todos os perigos que você vai descobrindo no caminho e nunca imaginaria que aconteceriam contigo. Mas aí você vence alguns, de outros desvia a tempo, outros finge que não existem. Sinto que estou mais armado, mais consciente do que não posso controlar e do que posso. Ser it boy literário não é fácil.


[Matheus] Há algo de Breillat, em Pornocracy, algo de Sade, Baudelaire e algo mais pop entremeando as brechas do imaginário de cada personagem. Temos um palanque de ícones que vem e vão, entre o popular e o clássico. Se você pudesse definir quais autores mais influenciaram sua escrita, quais você escolheria?


[Minet] Acho que a Coleção tem duas vertentes de influência. Tem influências diretas na escrita, estilo, poética, mesmo, e influências mais na perspectiva (conceitual, teórica, que seja) do livro. E algumas delas estão na intersecção. Sim, Sade, Genet, Dennis Cooper, o Blake de Canções de Inocência e Experiência, os ensaios The Beautiful Boy as Destroyer da Camille Paglia e Powers of Horror da Julia Kristeva, Kate Durbin, Cecília (especialmente os poemas infantis de Ou Isto Ou Aquilo), o conceito de Young-Girl do Tiqqun, Klossowski, Guyotat, Acker, Keiko Takemiya, R.L. Stine, Irigaray, Breillat sempre. O Pornocracy da Breillat sinto que se inspira muito no A Doença da Morte, da Marguerite Duras, que é uma das maiores influências não só na Coleção mas na minha obra como um todo. E Baudelaire foi central, porque ele engloba tanto. Além de tudo que é óbvio na estética - toda a maldição e perversidade que acabam servindo na verdade a uma espécie de pureza, de graça - ele representa toda uma ideia do que seria a posição de um poeta. Alguém que projeta o poema sobre um objeto, sobre um espaço, seja uma Musa femme fatale flor do mal ou a própria cidade, o espaço público, com o flaneurismo. Como o Coleção é uma história de objetos, contada pelos objetos, ele foi alguém com quem mantive um diálogo muito forte. O poema “Rio Sul Shopping Center”, talvez especialmente, acaba sendo uma grande resposta à obra dele. Com aquela perspectiva fragmentada, esquizofrênica, esses meninos que se confundem na sua abjeção com a própria (i)materialidade do shopping, para quem a posição removida do flâneur não faz sentido porque sempre estão sendo olhados enquanto olham, “que gostam tanto de espelhos que já viraram espelhos”. Alguns dos meus primeiros exercícios de escrita foram reescrevendo poemas de Fleurs du Mal, mas trocando a segunda e terceira pessoa da Musa para a primeira e misturando com trechos meus, criando poemas novos a partir disso. De certa forma, é um pouco o que a Coleção acaba sendo.


[Matheus] Há um forte potencial de identificação para com seus personagens, mas também uma impenetrabilidade no cerne de cada um deles. A carícia do desconhecido. Nos seus poemas, a experiência torna o corpo impenetrável e sua inexplorabilidade é o que gera o desejo por adentrá-lo. Olhar para o autor é como olhar para seus personagens? O que separa - ou une - Minet a cada um de seus Meninos?


[Minet] Me diga você. Olhar para o autor é como olhar para seus personagens? Acho que é inegável que há uma fusão. Parte de mim gostaria de simplesmente dizer “Menino morto, c’est moi.” E não seria mentira, mas também não sei se seria totalmente verdade. Tenho começado a sentir, às vezes, que sou - ou me tornei - ator. Mas tudo faz parte de mim também. Parece impossível, ou simplesmente inútil, separar totalmente as coisas. Muito da Coleção, do que acontece com os meninos do livro, do que eles expressam, é autobiográfico, mas muito não é. Há um elemento pessoal, talvez até confessional, mas ele é atravessado por camadas e camadas de conceito e intencionalidade. Não é como se eu estivesse vomitando na página. O mais visceral dos sentimentos ali está ali depois de ter passado por curadoria. Diria que quando comecei a expor o livro no meu perfil de Instagram, essas linhas entre autor e obra foram ficando bem mais borradas. Para divulgar meu livro sobre objetificação, comecei a me objetificar. Coisas que aconteciam comigo espelhavam coisas sobre as quais eu escrevia, e minha rede social acabava sendo quase uma instalação imersiva do livro, comigo - o que decidia expor de mim, nessa performance em tempo real - de autor mas também menino morto colecionável no centro. Antigamente quando me perguntavam sobre minha presença online eu respondia que só fazia o que fazia no Instagram para promover o livro, mas hoje em dia não acho que acredito mais nisso. Ele faz parte do projeto. E tem um preço, que exponho e exploro no Superstar.


superstar livro pedro minet
Imagem: Superstar, por Pedro Minet. Publicado pela Editora Patuá.

[Minet] Superstar é meu segundo livro, mas o primeiro de prosa, então, ao mesmo tempo em que é uma continuação de muito do que introduzi estética e tematicamente no Coleção, faz isso de formas totalmente novas. Mais espaço para destrinchar e investigar muita coisa. Meninos mais fatais e ambíguos do que nunca, e suas provações também. Ninguém sai ileso ao final, nem o autor. A primeira parte do livro tem uma estrutura mais clássica de coletânea de contos, com uma série de narrativas de rapazes, alguns adolescentes, outros jovens adultos, navegando dinâmicas muito frenéticas e complexas de desejo, violência, amadurecimento. Estudantes católicos se aventurando com executivos e skatistas depois da escola pelo Centro do Rio, cineastas universitários tentando seduzir críticos durante mostras de filme noir, atores pornô sofrendo crises de identidade pela noite de São Paulo, por aí vai. Tudo que a Coleção construiu de universo e mitologia, aqui você tem multiplicado. Na segunda, um elemento muito forte de autoficção é inserido, e pouco a pouco vai se formando um registro da jornada vertiginosa e dolorosa pela “cena” de um jovem autor (que pode ou não ser chamado Pedro Minet) em seu primeiro ano de reconhecimento, depois de publicar seu livro de estreia (que pode ou não ser intitulado Coleção de Meninos Mortos). Muito jogo com persona, identidade, esses embates de ficção vs. realidade, dinâmicas de poder, sedução, manipulação, culpa, etc. Muito ansioso para que todo mundo possa ler logo, mas esse período de antecipação também tem sido divertido. Muito obrigado pelo convite!






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