Enquanto ouço a canção da morte
- Juliana Andrade
- 12 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de abr.
Vejo à minha frente um descanso; por detrás do véu, a fantasia. Deitada ali, a coletânea da partida de uma vida toda, a lembrança dos dias perdidos. É a saudade em vão. Os pássaros pretos voam em círculos, bicam na curva do ombro, e os dias passam, correndo em meio à canção da morte. O luto vem, como uma última coisa, e então fica.
Este ano, Carrie & Lowell faz 10 anos. Sufjan Stevens, em 11 canções, murmura a saudade (da mãe falecida, do padrasto bondoso, da família, de si mesmo) no que, para mim, é um dos álbuns mais bonitos já criados.

Foto: divulgação
Talvez seja a voz suave, quem sabe as cordas de violão ao longo de todas as músicas. Digo que podem ser as letras sobre morte ou as poesias lamuriosas para um tempo que se foi e, portanto, não volta mais. Meio a tantas memórias, penso sobre as minhas próprias, e aí me vejo lá. Estou num campo de flores brancas, é verão, sinto o vento soprar.
Sufjan escreve como uma criança que foi abandonada. Numa loja de CDs, longe dos braços recolhidos de sua mãe. As lembranças se misturam, cruzam com a vivacidade das experiências vividas e o borrão das imaginadas. Adulto, ele conta nos dedos das mãos sobre os dias de felicidade dos quais se lembra, aqueles em Oregon, meio ao calor do verão, dos 5 aos 8 anos de idade. Quão bonito é poder voltar a esses dias. Quão triste foi vivenciá-los.
Você pode conhecer o nome Sufjan Stevens pela composição de Mistery of Love, canção principal do filme de Luca Guadagnino, Me Chame Pelo seu Nome (2017), cuja trilha-sonora original traz diversas outras músicas feitas por ele. Fourth of July, talvez, que há não muito tempo atrás se tornou um hit nas redes sociais. Ainda que Carrie & Lowell não seja um álbum desconhecido (pelo contrário, é muito prestigiado), boa parte da história por trás dele é.
Em 2003, com o álbum Greetings from Michigan: The Great Lake State, Sufjan ganhou a notoriedade da crítica especializada de indie e folk, mesmo que tenha percorrido outros tantos conceitos musicais desde 1999, ao longo de quase três décadas de carreira. Letras fantásticas e melodias grandiosas e outras mais singelas e pessoais; paralelos cristãos e menções à mitos gregos. Ao decorrer da discografia, o cantor construiu diversos cenários e nos apresentou a diferentes personagens, ficcionais ou não. Sua família seria, então, uma constante entre todos eles.
Carrie & Lowell é um resgate às raízes simples, às cordas piedosas, às canções de ninar gente grande. Suas composições, desde muito cedo, já exploravam a relação do cantor com a própria mãe, Carrie, e as dificuldades penduradas no laço entre eles. Aqui, somos os confidentes de tudo.
Muito novo, com 1 ano de idade, Sufjan foi abandonado por Carrie – bipolar, esquizofrênica e à época, viciada em drogas. Mais tarde, aos 3 (“três, talvez quatro”), foi deixado por ela novamente. Em Should Have Known Better, segunda faixa do álbum, ele relembra o segundo abandono, a própria pequenez em uma loja de discos, enquanto canta sobre o dever não cumprido de “ver o que podia ver” ou “ter escrito uma carta”. Em 2012, Carrie morreu de câncer de estômago, findando uma relação quebrada com os filhos. Três anos depois, volta à vida, mas ainda (para sempre) morta, em Carrie & Lowell.
Aos 39, Sufjan vê a mãe sentada à beira da cama do hospital, conversa com ela por horas. As dedicatórias de amor, tantas súplicas carinhosas, se compilam para transparecer na música mais famosa do álbum, Fourth Of July. Quando perguntado, uma vez, sobre o significado da canção, ele disse ser a transcrição daquele dia, o desespero de saber que em breve não a teria mais, cara a cara com as décadas que correram entre eles e os ecos de tudo que nunca disseram. A memória termina beirando os 5 minutos. Sufjan repete, preso na certeza imutável do luto: “vamos todos morrer”.
Acredito que é essa canção, bem no meio do disco, um símbolo da morte e da vida que vem após ela. A vida que fica e não se vai. A vida da criança deixada para trás outras vezes, que corre atrás da mãe até o último segundo sem nunca conseguir tocá-la por completo. Qual é o ponto de cantar todas essas canções se nem ao menos te escutarão?
Roland Barthes em A Câmara Clara, publicado em 1980, faz algo parecido. Em uma busca pela essência da própria mãe, falecida, em fotos antigas, Barthes adentra a fotografia por uma outra abordagem, mais íntima, menos apressada. Lá, ele procura pela figura materna em fotos sépia; aqui, Sufjan assobia para dentro da própria cabeça, na esperança de que Carrie irá encontrá-lo no meio e assobiará de volta. Em nenhum dos casos, entretanto, há uma resposta. Suas mães, perdidas em representações que não as correspondem, não voltam nunca, mas mesmo assim nunca se foram também.
No livro, ao menos, Barthes diz encontrá-la em uma fotografia de infância, em que a mesma posa para a câmera com um sorriso tímido. Ali, naquela fratura da vida, ele a vê. Em todas as outras fotografias, nesses outros momentos, sua mãe não está. Pode até ser que esteja, sim, em corpo, mas a essência de uma figura tão cândida e vívida nunca está, porque, para Barthes, nenhum fotógrafo jamais conseguiu capturá-la, justamente porque nenhum deles a conheceu.
Sufjan parte desse mesmo pressuposto: não conhecemos sua mãe. Carrie é um fantasma, uma sombra, um pássaro preto no céu, um luto espaçado e que corrói. Ela é a falta e a dor, a felicidade e a apatia. É o conhecido e o desconhecido, o vivo e o morto. O nada. O tudo. Agora, tudo de mim quer tudo de você.
Por nunca termos conhecido aquela de quem ele canta, somos além de confidentes: nos tornamos uma consciência íntima de Sufjan, alguém que sabe, mas só o que se destrincha entre as poesias. Os códigos e as abstrações de Carrie & Lowell nos inserem em uma história íntima, mas ao mesmo tempo tão ficcional, que fala de Deus, Poseidon, cidades dos Estados Unidos e uma família que nós nunca iremos conhecer. E é o charme desse narrador não confiável, que só pode falar da própria história e não da história de outro alguém, que faz este ser um dos álbuns mais belos já feitos.
Penso que é um folclore particular, uma restituição da infância, da juventude, da vida adulta. A culpa e a intimidade de um homem que ouço, mas não conheço de perto. É um infinito particular que adentro por menos de 1 hora, de onde preciso me retirar sozinha, melancólica e pesarosa. Em uma entrevista à Pitchfork, o cantor compartilha o propósito pessoal do álbum, para muito além de um convite à própria história: “Com esse disco, eu precisava sair desse lugar do faz-de-conta. Foi algo necessário após a morte da minha mãe — buscar um pouco de paz e serenidade apesar do sofrimento. Não está tentando dizer algo novo realmente, ou provar algo, ou inovar. Soa sem arte, o que é uma coisa boa. Não é meu projeto de arte; isso é a minha vida.”
Diante das próprias confissões, pouco a pouco, conforme as letras vão escorrendo pelo papel e o disco vai chegando ao final, Sufjan se vê refletido na própria mãe. Compartilham uma mortalha preta, os pensamentos suicidas, as bebedeiras sem freio e a dor de ir embora. Ainda que o álbum carregue o nome da mãe e do padrasto, entremeado em algum lugar, tecendo as próprias dores, há Sufjan Stevens.
Quem eu imagino, enquanto ouço a canção da morte, não é somente Carrie nos últimos dias de vida, tampouco Lowell no jardim de uma casa suburbana no Oregon; é Sufjan, pequeno, grande, por todo lugar. É ele quem celebra o nascimento da sobrinha, “a beleza que ela traz / iluminação”, aquele que lamenta não ter se aproximado da mãe antes. É ele, no leito de morte dela, desejando que “seja meu descanso, seja minha fantasia”. É Sufjan, que se destrói, contempla os pedaços de si mesmo e se reconstrói, lentamente. É essa melancolia assistida, uma eutanásia do luto.
Dia 30 de maio será lançada a versão comemorativa do álbum, em homenagem aos 10 anos, com a inclusão de demos de todas as músicas e duas novas versões: uma de Fourth of July, já presente no álbum original, e Wallowa Lake Monster, que foi lançada por Sufjan anteriormente, mas não integrou a obra final.
De antemão, no último dia 31, fomos surpreendidos pela demo de Mistery Of Love, que integra a trilha-sonora de Guadagnino, mas, agora, faz parte — e descobrimos que sempre fez — de Carrie & Lowell. Uma música singela, com um novo clipe nostálgico e repleto de arquivos antigos de crianças, adultos, famílias. Algumas fotos e vídeos de Sufjan, um ou dois lapsos de sua mãe. Abençoado seja o mistério do amor, e que tocante é saber que uma canção tão bonita foi pensada como pertencente a esse álbum, porque se encaixa perfeitamente. Mais otimista, mais afável. Com menções à filha do irmão, tão perto; à morte de Hefesto (e o luto de Alexandre, o Grande), tão longe. À vida e ao amor, vistos de um outro lugar, ainda no luto, mas em outro lugar.
No livreto da versão física de Carrie & Lowell há uma foto dele, ainda criança, sentado à mesa e comendo uma banana. Talvez tenha sido tirada em um dos verões que ele e os irmãos passaram com a mãe, pois é ela quem vemos enquadrada na mesma foto, um pouco mais atrás. Ainda que não olhe para ele, é a presença mais concreta que podemos ter desse personagem imaginário, dessa figura intangível.

Penso, outra vez, em Barthes, e na essência de todas as pessoas. Capturada, impregnada numa foto trivial de uma criança comendo ao lado da mãe: está ali, Carrie & Lowell.
Sufjan diz, com a voz fina, como quem quer confessar algo maior (mas nunca o faz), “eu apenas quero estar perto de você”. E quando me lembro dessa frase, vem uma felicidade repentina, mas também uma enorme vontade de chorar. Mesmo que por um momento, ele está perto da mãe. Somente Carrie e Sufjan. Sem nenhuma sombra, nenhum véu. Por um triz de se encontrarem. Separados para sempre. Juntos igualmente.
lindoooo 🥺🥺🥺🥺