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Litanias de sangue: um ensaio sobre Diamanda Galás

  • João Matheus Marques
  • 12 de set.
  • 7 min de leitura

“Qualquer homem que tiver fluxo da sua carne será imundo por causa do seu fluxo. Esta, pois, será a sua imundícia”. Essa é a Lei da Praga, diz Galás, e é, também, Levítico 15. Seus lamentos roucos ressignificam os versos; não mais palavras de Arão, de Moisés ou do Senhor. É outro século, um no qual o calvário é iluminado pelo brilho da TV; um no qual os culpados são aqueles que desejam, à margem. Um século feito de programas religiosos, de shows de fé e de pânico moral; um século feito, sobretudo, de testemunhas. Dos voyeurs da catástrofe e do fluxo de sangue que mana das pústulas, o cenário ganha certo rubor dantesco. E é coberta da representação simbólica deste mesmo sangue sobre o altar da Saint John the Divine que Diamanda Galás rasga o silêncio do próprio tempo.


Ao cantar sobre seus companheiros, vítimas da AIDS, Galás tece uma epígrafe de guerra: And on his dying bed he ask me / Tell all my friends I was fighting, too / But to all the cowards and voyeurs: / There are no more tickets to the funeral. É nesta vívida lembrança que a cantora greco-americana transfigura o cerne de sua dor em urgência. Não há mais ingressos para o funeral. É a urge, não reduzida ao estado de cólera, mas ao que clama, uiva e maldiz, que faz de Plague Mass – performance que encerra sua principal trilogia, em 1989 – um réquiem amargo o bastante para transgredir a impalpabilidade de um luto negado.


diamanda galás
Foto: divulgação

Eu sou o vampiro do meu próprio coração

— Um desses completos abandonados

Condenados ao riso eterno,

Mas que não conseguem mais sorrir!


L’Héautontimorouménos, Charles Baudelaire


Ela nasceu em San Diego, mas quando penso na Califórnia, definitivamente não é Galás a primeira coisa que me vem à mente. Bandas, hippies, marchas. A voz de Joni Mitchell, talvez. Parece haver uma espécie de dissonância entre a figura anacrônica berrando versos do século XIX e a ensolarada república. A Califórnia, com suas mansões e paróquias, porém, é lar de extremos. Terra dos desertos, dos incêndios, da prosa. Entre a igreja de LaVay e a Grace Episcopal Cathedral. Galás conhece as sombras desta República, embebidas em furor grego. Conhece o gosto do pecado que verte da garganta quando canta longe de seu pai, grego ortodoxo, músicas que ele desaprova. Outra californiana, Joan Didion, descreve o Golden State a partir da paranoia. Como faz Galás, a partir da outra face do sol. Também é Didion que, em 2022, recebe uma homenagem póstuma na Saint John the Divine, em Nova Iorque, onde Diamanda ofereceu anos antes a liturgia de Plague Mass. A comparação entre as duas é tênue o bastante para soar fabular, mas há algo que me chama particular atenção na análise que Didion faz acerca da personalidade de Georgia O'Keeffe – pintora, também conterrânea – e que me traz de volta para Galás: “A dureza não tem sido, em nosso século, uma qualidade muito admirada nas mulheres”.


Dureza. Aquela que seria taxada como satanista e louca foi criada aos pés do piano, onde conheceu o blues de Nova Orleans e a tradição grega através de seu pai, líder do coral de uma igreja. Quando criança, chegou até a participar de shows ao seu lado, mas o homem que gestou-a na fertilidade dos acordes negava-lhe o canto, que considerava destinado para “idiotas e prostitutas”. Cercada por livros, seu gosto inclinava-se para as páginas de Poe, Sade e Baudelaire, e por esta proximidade com os limites sombrios da carne e do maldito é que seus cânticos de acusação estão mais longe de Hey Jude e mais próximos d'O Albatroz.


Em 1979, com as rádios anunciando uma nova era para o pop, Diamanda mergulha no jazz avant-garde em parceria com os músicos Henry Kaiser e Jim French, no catártico projeto If Looks Could Kill. No mesmo ano, faz seu debut no Festival d'Avignon, não mais a filha prodígio ao lado do pai ortodoxo, mas a sombria intérprete de Un Jour comme un autre, do franco-esloveno Vinko Globokar, sobre uma mulher turca acusada de conspiração.


A graduação de Galás em bioquímica, sua posterior especialização em hematologia na Universidade do Sul da Califórnia e seu trabalho laboratorial em La Jolla vão na contramão do que se esperaria de alguém cuja carreira e educação se consolidaram em torno da experiência sonora. Mas, além das salas brancas, o sangue haveria de circundar também sua lírica nos anos seguintes, com força seminal e divinatória.


Eu, como muitos gregos, penso obsessivamente na morte todos os dias. Está nos genes. A morte está nos genes. Essa frase foi retirada de uma entrevista dada por Diamanda Galás para a The Quietus, em junho de 2024. Eu, como muitos gregos. Penso neste clichê, milenar. Tragédias, rapsódias, coros. Se Lady Macbeth suja as mãos de sangue, é porque Medeia primeiro o faz. As bacantes estraçalham Orfeu com grunhidos similares aos que Wild Women With Steak-Knives parecem sugerir, e a praga (com as implicações morais que essa classificação sugere) desce sobre Tebas como uma punição divina. Galás respira o ar de San Diego, mas também inala a fumaça de uma Grécia à la mode. Se Callas e Baltsa, também com sangue grego, interpretaram respectivamente Medeia e Carmen, o papel que é dado – e não ofertado – para Galás na tragédia humana é ainda mais hercúleo: o de sacudir as estruturas de resignação e punir aqueles que crucificaram os seus.


"Eu utilizei textos bíblicos porque estava interessada na anatomia de uma mentalidade da peste. Alguns eram de Levítico, um livro de leis que indicam como separar o límpido do impuro. Eu tinha acabado de ver a primeira pessoa com AIDS que conheci morrer em Nova Iorque, e quando voltei para São Francisco, comecei a trabalhar no texto do Salmos 88. Aquilo me prendeu e me chocou porque começa com 'Ó Senhor, Deus da minha salvação, tenho clamado dia e noite diante de Ti, que minha oração chegue diante de Ti, inclina Teu ouvido à minha oração'." - Diamanda Galás, em entrevista para a Quietus Magazine


Em seu ensaio sobre a AIDS, lançado depois de A doença como metáfora, Susan Sontag tensiona a cadeia de relações entre a síndrome e seus estigmas, desde sua instrumentalização na construção de um imaginário entre um suposto nós e um desviante outro até o ideal medievalesco de justiça enviada dos céus.


"O surgimento de uma nova epidemia catastrófica, num momento em que por várias décadas se assumia com confiança que tais calamidades pertenciam ao passado, não seria suficiente para reviver a inflação moralista de uma epidemia transformada em 'peste'. Era necessário que a epidemia fosse uma cuja forma mais comum de transmissão fosse sexual." - Susan Sontag, AIDS and its Metaphors.


Para ela, a interpolação sexo-síndrome da AIDS é a munição discursiva – e deontológica – que parece pregá-la de modo determinante como uma espécie de chaga moral. Sontag compara o câncer, a tuberculose e outras patologias metaforizadas durante os séculos, ora transformadas em artifícios estéticos e ora mitificadas em uma espécie de dilúvio eterno. São os anos oitenta, afinal: o pastor-de-uma-igreja-na-vizinhança fala para sua congregação que a morte é o castigo de Sodoma. Outro fala que a peste veio para purificar, para limpar e salgar o solo da devassidão. Um candidato às eleições aqui acusa migrantes, outro, ali, aponta o dedo da Nação para os gays. No púlpito ou na política, raramente mencionam casos de heterossexuais infectados e, quando mencionam, é através da fábula da influência do outro sobre o futuro de um inocente ou sobre o do próprio país. Há de se esperar que deste cenário emergisse alguém furioso o bastante para gritar contra os céus, mas Galás – que olha diretamente para o abismo – grita em direção aos rostos.


Se seu trabalho já apontava para o schrei e para a vingança, depois da morte de seu irmão, o dramaturgo avant-vaudeville Philip Dmitri-Galás, a fúria intensificou-se. O falecimento de Phillip – em decorrência de pneumonia e insuficiência renal causada pela evolução de seu quadro imunodeficiente – e de outras pessoas próximas de Diamanda (incluindo a de seu companheiro gay, Carl Valentino, para quem dedicou a faixa Last Man Down de seu álbum The Sporting Life), fizeram com que se envolvesse diretamente com o ativismo LGBTQIA+ e com o ACT-UP, movimento nova-iorquino centrado no direito dos portadores de HIV e no combate à homofobia. Seu slogan abaixo do triângulo rosa, Silence = Death (em português, “Silêncio = Morte”), inspirou o documentário homônimo do cineasta alemão Rosa Von Praunheim, parte de sua própria trilogia temática acerca da AIDS. Galás faz uma participação no projeto, ao lado de nomes como Keith Haring, e, com seu estilo característico, deixa uma mensagem clara: “resista a todas as tentativas de te fazer se calar, deitar e morrer”.


Silêncio = Morte
Silêncio = Morte

 

Quando o compositor húngaro Rezső Seress escreveu em 1933 a primeira versão do que viria a se tornar Szomorú Vasárnap Gloomy Sunday, ou Domingo Sombrio, em português –, algumas lendas alastraram-se diante do cenário da Grande Depressão. Em uma espécie de wertherfieber (efeito Werther), dizia-se que todos aqueles que ouviam às notas cometiam suicídio, com supostos cadáveres sendo encontrados nas ruas segurando partituras em mãos enrigecidas e uma onda de desesperança geral tomando da Europa. Na canção, Seress descreve o amor deixando a humanidade como as folhas desprendem-se dos galhos. Descreve as pessoas como pecadoras, egoístas, más. Seress diz que o mundo acabou. Um judeu no Entreguerras: seu sofrimento marcado sobre as partituras, parecendo ao público demais para suportar. Uma angústia insustentável o bastante para assentar na canção o status de lenda. A versão de Billie Holiday de Gloomy Sunday chegou a ser banida das rádios inglesas, e Björk interpretou-a ao funeral de Alexander McQueen, em uma cerimônia solene.


Em 1992, depois de sua trilogia da AIDS (Masque of the Red Death) e de Plague Mass, que renderam-lhe incontáveis e previsíveis acusações de satanismo, Galás lança sua própria versão de Gloomy Sunday, presente no álbum The Singer, junto a covers de clássicos de jazz, blues e gospel como I Put a Spell on You e Let My People Go. Cara a cara com o disco, chamar o que compõe seu corpo de cover, embora correto, parece redutivo. Na exegese que executa a partir do original, sua tez violácea se instaura: a experiência ganha contornos lúgubres, azuis, terríficos; é como estar sozinho, entre Galás e o piano, em um bar à meia-noite cujas luzes se apagam.


Este aspecto é, essencialmente, o que me fixou ao trabalho de Diamanda, um ano e alguns meses antes deste ensaio. Nenhuma de suas leituras, de salmos, poemas e de partituras, parecem minimamente desejosas de se resumir à técnica – que ela domina – ou de se manterem invioladas. Treinada em ópera e com alcance de três oitavas e meia, sua voz soa ora diabólica e ora angelical: arranha e respinga, ululando pelos ouvidos. Lembro-me da primeira vez que ouvi Supplica a Mia Madre, sua interpretação de um poema de Pier Paolo Pasolini. As notas cadenciadas não ilustram; pelo contrário, parecem entoar novos versos, não-verbalizados e espocantes, ao conteúdo original. A torrente que pulsa através de seus dedos na performance ao vivo de sua turnê, Malediction and Prayer, é sinuosa e feroz em uma glossolalia própria, munida do arrebate.


Quando inicia a declamação, o silêncio impera ante a batida em cada nota. Um misto de êxtase, espera, clarividência e dor. O amor cativo, a solidão talhada na impossibilidade de substituição de uma figura materna e a servidão: a percepção cruel de que é da graça que uma certa forma de angústia parece se cristalizar. Para a Folha de São Paulo, declarou que Baudelaire e Pasolini são seus irmãos de sangue, e que os leva para todo lugar. Seu primeiro álbum solo, Litanies of Satan, é batizado pelo poema de mesmo nome de Baudelaire, e é composto de sua interpretação destes versos (de 17 minutos) e da incomparável Wild Women With Steak-Knives (The Homicidal Love Song for Solo Screen).


Resző Seress ilustra a humanidade como verminosa, testemunhante, e nos versos de Galás, assim também é o próprio diabo. Homofóbico e covarde, Satã é, como o eu-lírico de L’Héautontimorouménos (em tradução livre, algo próximo de “O Carrasco de Si Mesmo”), vítima e causa de seus infortúnios. Em Litanies of Satan, também interpretação da poética baudelairiana, o anjo caído é o condenado expulso, martirizado, do paraíso; This Is The Law Of The Plague retrata-o como o totem da impureza e da cumplicidade humana. A dualidade carrega o estigma de seu tempo. O diabo como a falha moral; símbolo da escravidão entre a punição e o julgamento; uma marca humana. Passamos por uma pandemia, vimos a desinformação e o negacionismo instaurar-se a níveis catastróficos.


Foto: divulgação
Foto: divulgação

Depois de The Singer, Diamanda lança, em parceria com o multi-instrumentista britânico John Paul Jones (ex-membro do Led Zeppelin), o hipnótico The Sporting Life, que oferta, na comunhão entre órgãos, guitarras e vocais – em espanhol, grego, inglês e francês – a epítome do rock. Uma jornada maldita pela cidade a bordo de um conversível; um risca-faca sanguinário entre amantes e um lento declínio rumo à loucura: assim é a vida esportiva.


Seja nos becos de uma Nova Iorque assombrada por demônios ou pelas noites áridas da Califórnia, a serpente canta, inspirando artistas como Lingua Ignota e Anna Von Hausswolf no caminho. Como ativista, Galás segue denunciando através de suas redes genocídios e injustiças sociais e, em turnês ao redor do mundo, ainda professa seu credo sangrento carregando consigo a memória daqueles que ecoam em seus timbres. O tempo das falácias e o tempo onde a dureza não é bem quista para uma mulher ainda não chegou ao fim, e nestes novos anos 70, é sempre bom ouvir o que as moiras têm a dizer.


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