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Entre afetos e o silêncio: o novo álbum de Lau e Eu

  • Júlia Carla
  • 26 de nov.
  • 5 min de leitura

Em meio à pressa e ao ruído da vida em uma grande capital, Lau e Eu parece cantar de um lugar que exige pausa. De voz mansa e olhar analítico, o cantor, compositor e multi-instrumentista sergipano Lauckson Melo construiu, aos poucos, um trabalho que se destaca pela combinação entre profundidade e delicadeza. Depois de anos em silêncio discográfico desde o seu álbum de estreia, Selma (2018), ele retorna com feroz comum silêncio entre nós…, projeto dividido em duas partes que reflete sobre o poder do não dito, do vazio e das zonas de sombra que permeiam as relações humanas.


Por sete anos, Lau viveu o que ele chama de um “tempo de formação”. Foram anos de deslocamentos, experimentações e amadurecimento, tanto na vida quanto na arte. Agora, o músico sergipano conclui o seu novo álbum, resultado de um processo marcado por momentos de recolhimento e tensão criativa. “Acho que foi o tempo de entender o que eu queria fazer e o que era humanamente possível fazer”, diz ele. “Demorou sete anos para chegar a um nível de qualidade que eu sentisse pronto para lançar.”


lau e eu
Em conversa com a Guilhotina, Lau e Eu reflete sobre o novo projeto e o cotidiano de um artista independente.

Mais do que um disco, feroz comum silêncio entre nós… é uma espécie de ensaio íntimo sobre como o silêncio molda afetos. “O nome do álbum é uma elaboração pessoal, mas tem muito do que considero uma experiência comum”, diz Lau. “O isolamento tem sido uma forma corriqueira de lidar com o conflito, e nesse isolamento se instaura o silêncio. Vejo isso como um sintoma do capitalismo tardio. O sentido se constrói a partir do silêncio e do não dito. Percebi que muita coisa não se resolve conversando e quis retratar esse sentimento com o álbum.”


Primeiro e segundo ato: silêncio e ferocidade


A primeira parte, lançada no dia 27 de julho, conta com seis faixas e traz o tom de quem observa as ruínas de uma relação e tenta entender o que ficou. Canções como o sonho de Minelle…, com participação de menino thito, e limitações… revelam uma escrita que combina lirismo cotidiano e introspecção psicológica, sempre guiada por produções minimalistas que misturam lo-fi, R&B e texturas eletrônicas.


“Trabalhei cada música como se fosse um pequeno espelho do que vivi”, conta o artista. “Muita coisa mudou na minha vida e na forma de ser músico independente. Me sinto com mais visão, mais paciência e também mais vulnerável.”


O conceito do disco surgiu quase por acaso. Em meio ao processo de composição, uma frase da canção Coivara do sono acendeu uma luz: "Feroz como um silêncio entre nós”. “A partir daí, o silêncio virou tema”, explica. “As músicas têm reticências no título, estão todas em minúsculo, é uma forma silenciosa de dizer as coisas.”


Mais do que metáfora, o silêncio se tornou estrutura. O artista descreve pausas e respiros como elementos narrativos. “Em Coivara do sono, por exemplo, a música para, e aí vêm os metais. Está cheio dessas pausas que representam a ideia de silêncio.” 


A palavra “coivara” veio de uma leitura de Coivara da Memória, de Francisco J. C. Dantas, também artista sergipano. “Uma professora me indicou o livro, e aquela palavra me capturou”, lembra. “Li, adorei, e a partir dali criei minha própria coivara, a do sono. Ela me reprovou na matéria, mas ganhei o nome de uma das músicas mais legais que já escrevi”, ri.


Em setembro, foi lançada a segunda parte de feroz comum silêncio entre nós… apresentando cinco novas faixas, consolidando o projeto como um retrato em dois atos. Se o primeiro volume era um espelho do silêncio e da saudade, o segundo se volta para o movimento, as ironias, o desejo e o confronto com a própria imagem.


A capa, criada pelo próprio artista, traduz visualmente esse estado de espírito. “Quis misturar minha imagem com o universo do álbum e elementos das capas dos singles que saíram antes”, conta. “O laranja e o amarelo, os riscos e rabiscos, as formas que cobrem os olhos e a boca simbolizam esse silêncio nas formas cruzadas que instigam uma espécie de velocidade e ferocidade.”


Ambas as partes do disco ele produziu quase integralmente sozinho, “mexendo no programa, gravando a maioria dos instrumentos”, como diz, é resultado de uma virada pessoal: a aceitação de si mesmo como produtor musical. 


Nas letras, o artista trabalha entre a vulnerabilidade e o jogo de linguagem. “Eu gosto de procurar sons e palavras que encaixem com melodias. O meu compromisso não é com o sentido, é com o som. Às vezes o resultado é interessante, outras vezes nem tanto, mas é sempre uma busca.”


Travessia cultural e simbólica: 


Natural de Aracaju, Lau é parte de uma geração de artistas nordestinos que transitam entre diferentes linguagens e referências com liberdade. Já passou pelo folk, pelo indie rock e pela MPB, mas em feroz comum silêncio entre nós… sua música assume um lugar que ele define como “world music do terceiro mundo”. 


“Minha música é do terceiro mundo, do sul global, uma música do mundo feita no terceiro. Música de computador, música de rapaz negro nascido na capital do menor estado do Brasil, que imigrou pra metrópole e decidiu cursar História. Música, vida, sonho.”

Entre a precariedade e a persistência, ele foi se integrando à cena independente paulistana, colaborando e conhecendo com nomes da cena independente local como Uiu Lopes e Dieguito Reis. Ao mesmo tempo, começou a perceber que as estruturas que sustentam a produção artística no país ainda reproduzem desigualdades regionais profundas: “Existe um colonialismo interno no Brasil. São Paulo e Rio de Janeiro foram responsáveis por construir essa ideia de Brasil, e nós, do Nordeste, crescemos com essa relação de subcentro.”


Fotos: Marcus Leoni
Fotos: Marcus Leoni

Essas vivências atravessam o novo álbum, não apenas nas letras, mas também na textura sonora e na forma de produção. Lau conta que “os artistas de que eu gosto não levantam muito as questões materiais. Mas esse álbum carrega isso: a materialidade de ter o meu equipamento, de acumular conhecimento técnico, de conseguir fazer o disco acontecer.”


A ideia do silêncio:


A ideia do silêncio, que atravessa as duas partes do disco, surgiu como um reflexo das próprias experiências pessoais, afetivas e filosóficas de Lau. Hoje com 27 anos e vivendo em São Paulo, ele reflete sobre o silêncio como uma forma contemporânea de sobrevivência emocional.


“Vejo o silêncio como uma característica humana dos nossos tempos. A gente se isola para lidar com o conflito, e nesse isolamento o silêncio se instala. É quase um sintoma do capitalismo tardio: as relações são rápidas, fragmentadas, e a comunicação falha. Mas o silêncio também é um modo de construção de sentido, ele dá forma ao que não pode ser dito.” explica o artista.


Essa visão teórica se mistura à vida cotidiana do artista. Estudante de História, Lau entende o silêncio não como ausência, mas como fenômeno social. Ele fala do tema como quem está no meio de um campo minado entre o íntimo e o político. “Estudar História me ajudou a perceber que o silêncio é coletivo. As pessoas calam por medo, mas também por cuidado, por cansaço, por estratégia. Às vezes, o silêncio é o único modo possível de existir.”


O resultado de todo esse turbilhão de experiências e sensações é uma obra que não busca grandes refrões ou explosões de volume, mas uma escuta atenta, feroz comum silêncio entre nós… se volta para o que costuma passar despercebido. Entre pausas e fragmentos, Lau construiu um álbum que observa uma geração que fala muito, mas nem sempre se escuta.


“O sentido se constrói a partir do silêncio e do não dito”, diz o artista. As duas partes do álbum seguem essa lógica: com uma abordagem contida, ele propõe pausas e convida à escuta, mostrando que há força também naquilo que não se grita.


Com a primeira turnê marcada para novembro, Lau e Eu leva o novo álbum a palcos de cinco estados brasileiros, consolidando de vez sua presença no cenário musical nacional.

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