top of page

Geografias do espetáculo: quando o palco se transforma em experiência

  • Maria Luiza Albuquerque
  • 29 de set.
  • 6 min de leitura

A transformação do palco como meio expressivo total acompanha a necessidade das novas gerações por saturação visual e a busca coletiva por estética e pertencimento. Os holofotes coloridos e os telões com imagens genéricas se tornam demodé diante do maximalismo contemporâneo. Os palcos, aqui, deixam de ser apenas plano de fundo e se integram ao artista, que se preocupa em tornar o público cada vez mais imerso e se destacar dentro de um universo tão concorrido quanto o da música. São verdadeiras instalações de arte e movimento, que dialogam com as artes visuais, a arquitetura e a tecnologia.


Mesmo depois de séculos de canções, artistas e shows, ainda é possível ser único e criativo? A resposta para essa pergunta é mais complexa do que um simples "sim" ou "não". Apesar de ser uma linguagem antiga e muitas vezes tratar de temas banais, a música ainda encontra espaço para inovação ao expressar o óbvio de forma oblíqua. Trata-se de saber dizer o que muitos já disseram, mas de formas que surpreendem — e, ao mesmo tempo, despertam pronta identificação. A arte atravessa a dialética e, assim, se realiza ao preencher o papel em branco. Enxerguemos esse papel como a estrutura tradicional de um show: o cantor ao centro, músicos em volta preenchendo o espaço e, ao fundo, um telão com imagens ilustrativas ou cores que sincronizam-se com as luzes dos holofotes. Se a música já disse quase tudo, o palco agora fala por ela — com luzes, estruturas, figurinos, movimentos e atmosferas que atravessam o corpo da audiência e tornam o show um acontecimento total.


Na década de 70, o astro David Bowie levou a estrutura dos palcos muito além do que apenas um apoio e transformou sua turnê em uma experiência imersiva. Seu espetáculo, Ziggy Stardust Tour, e o subsequente, Diamond Dogs Tour, exploram o imaginário coletivo e permeiam o irreal. A transformação para um mundo intergaláctico, com trocas de figurinos, maquiagem e cenários psicodélicos, surpreendeu o público e conferiu a Bowie o pioneirismo em criar uma atmosfera nova, na qual o espectador permanecia imerso por cerca de duas horas.


david bowie diamond dogs tour

Protótipo do palco da Diamond Dogs Tour (1974) de David Bowie. (Foto: HA.com)


Além dele, outros artistas também seguiram esse caminho inovador: Pink Floyd com The Wall, que apresentava uma parede sendo construída e destruída ao longo do show, além de bonecos infláveis que dialogavam com o universo do disco; anos depois, U2 com palcos grandiosos e inusitados — em forma de coração, 360°, ou remetendo a uma estação de TV; e a artista sueca Marina Abramovic, com a performance Rhythm 0 (1974), em que permanecia estática por seis horas enquanto o público interagia livremente com seu corpo — quase como um manifesto sobre a objetificação dos corpos femininos e, ao mesmo tempo, uma ode à multiplicidade de funções estéticas e simbólicas que esses corpos podem representar, com o adendo de entender o que o público faria com tanta liberdade e qual seria o limite do indivíduo.


Essa performance influenciou apresentações recentes de artistas como Lady Gaga e Björk. A cada álbum, Gaga fragmenta novos caminhos. Assim como Marina, ela experimenta o uso corporal como algo artístico, integrando a moda e a coreografia como pontos cruciais nas turnês. No caso da islandesa, seus shows sempre tiveram a mistura de música, artes visuais e um quê tecnológico com o uso de máscaras e realidade virtual, além da concepção do álbum Biophilia, que uniu ciência, natureza e som em um projeto variado. Björk transforma o palco em um organismo vivo, onde o corpo e o ambiente performam juntos, rompendo os limites entre o humano e o digital. Ambas mergulham nos caminhos da liberdade e da expressão através da arte.


Os sociólogos Nathalie Heinich e Gilles Lipovetsky apontam a arte e a estetização como extensões do ser, sustentando que elas existem pela identificação do indivíduo com a obra. Trata-se de se enxergar na arte e buscar semelhanças que ajudem a compreender a si mesmo por meio de outras expressões. Heinich, em especial, destaca que a arte é um fenômeno construído historicamente e sustentado por práticas sociais.


Caminhando nesse ponto da identificação estética, os shows se aproximam, cada vez mais, de um encontro do sentimento catártico, em que os palcos funcionam como espelhos — revelando o interior de cada espectador, enquanto o fazem sentir-se tão grandioso quanto o artista no centro. É como criar um avatar em um determinado jogo e, a partir disso, tomar decisões e fazer a diferença dentro de um universo que sempre se quis habitar. O palco se torna a extensão das músicas, compondo experiências e articulando visualmente cada passo. As canções tornam-se eixo de uma experiência sensorial muito maior: luzes, banda, coreografias, figurinos, formas e presenças.


marisa monte turnê portas

O palco de Marisa Monte é todo em branco e se enfeita com os visuais pensados para a turnê Portas. (Foto: Leo Aversa)


No Brasil, esse movimento tem se consolidado em novas turnês. Marisa Monte, em Portas, adota um minimalismo cênico sofisticado e engenhoso. O palco, ali, é uma tela em branco que vai sendo preenchida ao longo do show, enquanto o público testemunha a construção de verdadeiras obras de arte. As projeções colorem o palco com pinceladas sutis, e a posição exata e inquietante de Marisa expressa como o palco parece flutuar diante do público. Algo semelhante ocorre nos shows de Liniker, especialmente na Caju Tour, que carrega uma potência difícil de ser descrita apenas com palavras — uma força que nasce do manifesto e do acolhimento. Desde a escolha dos figurinos até a construção visual da personagem Caju, tudo carrega metáforas e personificações.


Além de evocar presença, os palcos também assumem a memória e provocam nostalgia. Nas turnês de despedida de Gilberto Gil e da parceria entre Maria Bethânia e Caetano Veloso, observa-se o uso sensível de lembranças como recurso estético. Os shows têm o objetivo de celebrar as conquistas e oferecer uma última oportunidade de viver em conjunto com o público. A atmosfera remete às tardes de domingo chuvoso, na casa dos avós, explorando e redescobrindo caixas de fitas cassete, fotografias reveladas e discos de vinil. Essa sensação se manifesta na escolha de realizar os shows entre família e com agregados, nas fotografias exibidas nos telões e na maneira como essas imagens, em conjunto com as músicas, despertam lembranças pessoais e coletivas. Não se trata apenas da celebração do sucesso dos artistas, mas também de revisitar o passado e comemorar o agora, mais do que nunca.


gilberto gil turnê tempo rei

A turnê de despedida, Tempo Rei, de Gilberto Gil reúne lembranças da carreira. (Foto: Taba Benedicto/Estadão)


A cenógrafa e artista visual britânica Es Devlin compartilha, em documentário à Netflix, seu processo criativo por trás de estruturas que desafiam o óbvio. Suas ideias pensam o espaço como um lugar de narrativa, como plano de fundo, mas também como protagonista. Devlin já trabalhou com nomes como Beyoncé, The Weeknd e Rosalía. O que todos eles têm em comum? Todos fazem de suas turnês experiências imersivas e metalinguísticas. Esses artistas atravessaram a estética de um show para algo muito maior: uniram campos diferentes como a moda, o cinema, a cultura digital e as artes visuais para experimentar os palcos com o corpo e o artista como centro. Junto à cenógrafa, puderam elevar o nível das performances e utilizá-las como uma metáfora visual de ancestralidade, resistência, contracultura, performance política e desfile de moda.


Em uma era dominada pelo apelo visual e pela velocidade da informação, recorrer à estética é quase como um respiro. O palco se torna, então, uma provocação, um símbolo. Cada detalhe carrega uma narrativa, e a competitividade artística eleva ainda mais o nível de exigência. O espetáculo torna-se linguagem. Quando Beyoncé cavalga um cavalo de espelhos e faz um álbum country com toda a estética estadunidense interiorana, ela não apenas impacta visualmente — fala sobre feminilidade, poder e liberdade negra em contextos diversos, abordando identificações e espaços novos. Quando Rosalía mistura flamenco com motos e neons na Motomami Tour, renova tradições e desafia rótulos culturais. Quando Liniker entra em cena com figurinos dramáticos e cenários carregados de significados, ocupa espaços, com brilho e voz, e leva ao público a brasilidade e o reconhecimento precisos.


Esse caminho do cenário musical me encanta e me faz lembrar que somos, na verdade, reflexos do nosso meio. É o arrebatamento das percepções que temos de nós mesmos e daquilo em que acreditamos, em um breve instante. O enlace do individual e do coletivo. Por isso, o palco se move, se transforma e se funde ao artista. Quando isso acontece, deixa de ser fundo e vira forma, vira emoção. Cada apresentação, então, se torna uma memória inesquecível para quem esteve ali e vivenciou o que é, de fato, sentir-se parte. Talvez esse seja o grande barato. É nessa costura entre técnica e identidade que os palcos encontram a sua atmosfera transformadora e enfeitiçam quem assiste, os convocando a olhar para si mesmos. Que a arte seja sempre a porta-voz dos questionamentos e das hesitações. Seja por meio de performances super produzidas ou por meio de composições intimistas., o que importa é a verdade.

 

Comentários


bottom of page