Rádio sem órgãos: Artaud, Anti-Édipo e Zé Celso
- Lívia Coelho
- 4 de set.
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de set.
Para Acabar com o Julgamento de Deus foi uma peça radiofônica desenvolvida por Antonin Artaud — dramaturgo, ator, poeta francês e integrante do movimento surrealista — em 1948, tendo sido censurada no dia anterior ao seu lançamento na Rádio Nacional Francesa; posteriormente foi publicada, “tornando-se uma Cápsula Revolucionária da Cultura do Corpo Humano”, como cita o Teat(r)o Oficina, grande expoente de sua difusão cênica adaptada no Brasil. Um mês após a sua difusão, Antonin faleceu, deixando um marco na produção artística, filosófica e, sobretudo, no teatro.

Perpassado por uma linguagem poética, o decorrer da obra conta com críticas à sociedade ocidental, seus automatismos, a colonialidade e ao modo como corpos e mentes são sucessivamente controlados, podados, sujeitados (termo bastante utilizado por Michel Foucault, para denominar a sujeição de corpos, a forma como esses são dominados e padronizados conforme o poder disciplinar) por forças externas.
É importante ressaltar que nas produções de Artaud cada palavra dita estabelece uma contraposição direta à estruturação que regia a sua época, e esse é um fato deveras importante de se analisar. O período em que Antonin viveu foi marcado pela devastação ocasionada pelas guerras. O mundo encontrava-se em desespero, cada ínfimo símbolo de combate também era sinônimo de destruição. Todo ser era uma arma a serviço da morte e da própria possibilidade da morte de si. Não havia mais a ilusão da vitória, mas sim a inevitável sombra das consequências trágicas vivenciadas. Esses acontecimentos definiram boa parte das criações do século XX.
Além disso, suas ideias não são perpassadas apenas por uma crítica, mas por uma vivência e as marcas deixadas em si, afinal, Antonin chegou a ser internado em clínicas psiquiátricas, presenciou o tratamento de choque e a violência contra os corpos de indivíduos considerados “loucos”. Conhecer esse contexto permite observar a peça para além de uma conceituação e vê-la como uma experiência, uma proposta para além da dor e das limitações sociais impostas sobre o ser humano.
Essa histórica peça de Antonin foi um ponto-chave no conceito de “corpo sem órgãos”, muito explorado por autores da filosofia pós-estruturalista, como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Nietzsche e Foucault. Em um trecho, Antonin cita pela primeira vez o termo:
“Amarrem-me se quiserem, mas não tem coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido fazer um corpo sem órgãos, então o terão libertado de todos os seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então o terão ensinado a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares, e esse avesso será seu verdadeiro direito,”
Mas, afinal, o que seria um corpo destituído de uma organização?

À primeira vista, o termo pode assustar, incomodar, evidenciar a inquietude humana perante a organização rígida do corpo e da mente, propondo um espaço de intensidades, fluxos e potência, onde a experimentação não se submete a normas externas.
Um organismo, assim como uma fábrica, opera com base nas funções dadas a cada parte, a cada órgão, a cada trabalhador. Na sociedade não é diferente, cada indivíduo exerce um conjunto de funcionalidades pré-determinadas e quando essas não são atendidas, ele será punido em uma cadeia, em um hospício ou em qualquer outra instituição panóptica. Criar para si um corpo sem órgãos seria, portanto, ir além e subverter tudo aquilo que limita o corpo, como o patriarcado, as normas de gênero e o colonialismo. Construindo multiplicidades e potencialidades de sentido, ultrapassando as construções sociais.
Foi a partir desse prisma conceitual que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari mergulharam nos estudos a respeito do termo e em sua utilização dentro do pós-modernismo. A primeira explicação surgiu no livro Anti-Édipo, lançado em 1972 e tendo como grande influência os acontecimentos de 1968, isto é, uma sequência de acontecimentos mundiais que culminaram em reivindicações diretas contra as guerras e à forte opressão social. Nesse contexto, os autores ramificaram suas páginas em uma análise da sociedade e dos indivíduos, da repressão sucessiva aos corpos e das possibilidades de mudanças frente a essas questões. O conceito de Artaud, portanto, eclode em o Anti-Édipo, devido a sua natureza crítica subversiva à concepção estruturalista existente até então.
No livro, Deleuze e Guattari descrevem o conceito por meio de uma metáfora que o associa a um ovo. “O corpo sem órgãos é um ovo [...]. Aqui nada é representativo, tudo é vida e vivido: apenas faixas de intensidade, potenciais, limiares e gradientes [...]."
O “ovo” é anterior à forma, antes da definição dos órgãos, antes de ser “olho”, "boca”, “estômago”. Ele é o puro campo de intensidades, pura possibilidade. Não possui definições, divisões, padrões. Ele apenas é, e sendo, encontra oposição na rigidez e vê o próprio fluxo do devir — isto é, do que vem a ser, mas nunca é, está sempre num constante fluxo, numa sucessiva confluência. É o retrato firme daquilo que ainda não foi aprisionado em forma, da intensidade, do desejo. É o contrário do corpo domesticado pela sociedade.
Nessa linha de raciocínio, o corpo sem órgãos encontra sua oposição na sociedade da disciplina, de Michel Foucault, em que a docilidade dos indivíduos é produzida por engrenagens do controle. A automatização dos processos sociais em pleno maquinário sobre os indivíduos é a crítica central que fundamenta a obra Para Acabar com o Julgamento de Deus, de Artaud. Ao longo dos múltiplos fluxos sonoros impressos pela voz do dramaturgo, críticas à sociedade pós-guerra são expressas de maneira visceral, inicialmente através de uma citação sobre a “prova do licor seminal”, um procedimento comum às antigas escolas americanas, em que uma quantidade de esperma é entregue à instituição para que o aluno ingresse nesta, com o objetivo de se “criar” novos integrantes ao exército americano.
“Pois cada vez mais os americanos sentem falta de braços e crianças ou seja, não
de operários
mas de soldados
e eles querem a todo custo e por todos os meios possíveis fazer e produzir
soldados
com vista a todas as guerras planetárias que poderão travar-se a seguir
e que pretendem demonstrar pela esmagadora virtude da força
a superioridade dos produtos americanos”.
Toda a estrutura é embasada na necessidade de funções pré-estabelecidas, de órgãos e seus organismos. Os indivíduos, então, tornam-se meras ferramentas à disposição da máquina estatal. O que, mais tarde, seria para Foucault uma marca característica da sociedade disciplinar em sua sucessiva necessidade de tornar “dóceis” os corpos por meio da sujeição, discipliná-los a atuar perante um conjunto de processos, limitá-los e estabelecer fronteiras por meio da coerção, da punição e do julgamento.
Em contrapartida a essa estrutura, Antonin desenvolveu uma forte ligação com outras culturalidades além da ocidental, transpassando e confrontando a civilização europeia. Tendo isso em vista, o dramaturgo teve uma breve experiência com os Tarahumaras, povo indígena do México, vivenciando seus ritos e crenças. O que, inclusive, chegou a trazer aos seus espetáculos, no denominado Teatro da Crueldade e Teatro Ritual. Sua proposta era a de criar um teatro que fosse além do espetáculo tradicional, para se tornar uma "experiência vital e sagrada" que reconecta o indivíduo ao universal e quebra os padrões impostos pela sociedade. O ritual, nesta concepção, não é apenas uma peça teatral, mas um processo de fusão entre arte e vida, que busca desvendar e liberar as potencialidades do ser humano através do corpo, rejeitando a racionalidade e o "textocentrismo".
“Abandonem as cavernas do ser. Venham, o espírito respira para fora do espírito. É tempo de deixarem suas moradas. Cedam ao Todo-Pensamento. O maravilhoso está na raiz do espírito”. - Artaud
No Brasil, sua obra ficou conhecida, sobretudo, pela difusão realizada por José Celso Martinez Corrêa, que trouxe com força o teatro da crueldade ao país, expandindo horizontes à produção dramatúrgica brasileira e tendo como grande influência Antonin Artaud. Nascido em 1937, Zé Celso foi o precursor de uma grande revolução no campo artístico-cênico brasileiro. Em 1958, fundou a histórica companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, que atualmente é um patrimônio material e imaterial pelo IPHAN.
A adaptação Pra dar um fim no juízo de Deus é um exemplo da potencialidade teatral percorrida pelo Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Sua primeira apresentação ocorreu em 4 de Setembro de 1996, em homenagem aos cem anos de nascimento de Antonin. Desde então, o espetáculo foi retomado várias vezes e teve sua mais recente temporada em 2016. Abordando também, ao longo da adaptação, uma crítica à política daquele período. Fato esse que se estabelece solidamente nas raízes de pensamento "Artaudianas" e "Zé-Celsianas", isto é, da subversão, do questionamento e acima de tudo, da arte como ferramenta transformadora.

Por fim, é importante citar que Artaud não cabe e jamais será encaixado nas molduras tradicionais. Além de gênio, ele é a personificação de quem não se contenta com padrões, mas com as suas rupturas. Foi de sua “loucura” que brotou a potência e os múltiplos fluxos de um pensamento que desorganiza para dar à luz à criação, que fere cruelmente para transmutar.
É sob esse prisma que Gilles Deleuze e Félix Guattari o observam: não como uma “persona” a ser domesticada pela filosofia, mas como uma fonte inesgotável de experimentação. O corpo sem órgãos, a multiplicidade, a recusa da forma fixa — tudo ressoa no grito artaudiano que ainda ecoa hoje. O dramaturgo não simboliza o desvio, mas o método. Não é doença, mas abertura. É o caos de onde nascem todas as possibilidades artísticas e múltiplas. E talvez seja justamente por isso que, mesmo agora, Artaud incomoda, sacode, arranca da passividade maquinária. Porque seu teatro, assim como a sua própria existência, foi a contínua fluidez da encenação de uma pergunta complexa: como existir fora das amarras do juízo de Deus?
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