top of page

A história inexistente: 50 anos de "Salò"

  • Pedro Minet
  • 5 de fev.
  • 8 min de leitura

“Para decifrar o gesto do pervertido, Sade construirá um código de perversão. Seu signo chave é revelado pela constituição do gesto sodomita. Para Sade, todas as coisas, próximas ou distantes, gravitam em torno desse gesto. (…) O que o gesto perverso assim codificado introduz na linguagem do “senso comum” é a não-linguagem da monstruosidade, que subsiste sob o código. Aqui, entre a linguagem racional das normas e a anomalia, existe uma espécie de osmose. (…) Sade planta seu personagem no mundo cotidiano; ele o encontra em meio às instituições, nas circunstâncias fortuitas da vida social. Assim o próprio mundo surge como o locus onde se verifica a lei secreta da prostituição universal dos seres. Sade concebe a contrageneralidade já implícita na generalidade existente, não para criticar as instituições, mas para demonstrar que as próprias instituições asseguram o triunfo das perversões.”

Pierre Klossowski, Sade Mon Prochaine

 

Neste ano que começa agora, Salò, ou os 120 Dias de Sodoma, a adaptação maldita, de Pier Paolo Pasolini, da obra — inacabada, também maldita — do Marquês de Sade completa seus cinquenta anos. No topo de listas de "filmes mais perturbadores de todos os tempos" desde seu lançamento, o status de clássico se deve em boa parte a sua infâmia. Exibido em inúmeras sessões de meia-noite e como teste de resistência para cinéfilos iniciantes ou demais curiosos, a escatologia explícita que pontua o desenrolar da narrativa acaba frequentemente ofuscando todo o resto. E o resto é tudo. Lembro-me da primeira vez que assisti, aos quinze, depois de já ter lido o livro original, em pânico contido ao dar play sobre como a experiência poderia me transformar. Não esperava a valsa morosa dos créditos iniciais, os planos cirurgicamente simétricos, a paleta pastel, palácios, buquês, bochechas coradas, toda a beleza e o bom gosto inegável, abruptamente interrompidos por dejeto e brutalidade em uma progressão tortuosamente insignificante. Lembro de John Waters, Papa do Trash — cujo Pink Flamingos (1972), dois anos antes de Salò, anunciara o scat como leitmotif do cinema explícito da época — pontuando, de cara fechada, o apreço estético do filme de Pasolini:

 

Salò é um filme lindo, lindo. (...) Não acho que seja obsceno. Pode ser que use obscenidade de forma a pontuar sobre fascismo. Sobre fantasias, sobre poder; é na realidade um filme sobre a pornografia do poder.”


salò pasolini
Salò ou Os 120 Dias de Sodoma (1975)

 

O bom gosto não é contradição. A beleza pura consolida o horror puro, é seu órgão inerente, excretor. Uma história de urofilia (e pedofilia) é narrada por uma matrona vestida no mais delicado traje de tule enquanto rodopia pela sala; meninos nus segurando ramos floridos são examinados e assediados em fileira como porcos de abate, dois jovens soldados dançam valsa ao final do filme ao mesmo tempo em que outros jovens são brutalmente mutilados do lado de fora do cômodo. Essa maculação sobreposta de símbolos classicistas, nostálgicos do belo, serve um diálogo transparente não só com valores estéticos fascistas, mas com a própria obra prévia de Pasolini, obcecada com a encenação de mitos fundamentais de civilização desde os anos 60, de Medeia a Jesus a Sherazade. Quando decidiu empreitar sua Trilogia da Vida — Decamerão (1971), Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974) —, sua intenção era de resgatar uma noção de desejo e sexualidade, pré-industrial/edipal, quase naïf, que parecia ser cada vez mais devastada pelo avanço do capitalismo. Sua decepção quando os filmes, apesar de sucessos de bilheteria e crítica, foram recebidos como erótica frívola, soft porn, e prontamente comodificados e absorvidos pela mesma cadeia de mercado e objetificação da qual ele tentava escapar, pode ter sido a ruptura final que desaguou na fenda infernal, até hoje imbatível, que é Salò.

 

Lançado no ponto médio dos anos 70, em meio ao arrastado colapso de todo idealismo da década anterior, o filme acaba não só sendo uma reabertura das feridas do passado mas um espelho-oráculo do rumo que a liberação sexual do então presente tomaria com sua assimilação pelo neoliberalismo. Passado, presente e futuro de uma vez, o mundo inteiro em 1h57 (Jean-Luc Godard sobre Au hasard Balthazar). Os paralelos com Sade, cuja obra é um meandro inclassificável, resoluto em sua ambiguidade, de crueldade e piedade, vulgaridade e pompa, são perfeitos. Escrita pouco antes e durante a Revolução Francesa, denunciava a aristocracia e a Igreja ao mesmo tempo em que rompia radicalmente com o racionalismo de oposição dos pensadores iluministas, cuja ideologia atingiria hegemonia até desencadear no cenário que Pasolini expõe em sua canção de cisne. Inúmeras teorias levantam a possibilidade de que o diretor teria sido assassinado politicamente em consequência direta do conteúdo do filme (outro eco de Sade, que escreveu 120 Dias de Sodoma enquanto preso político na Bastilha), um martírio de imitação da arte, mas mesmo se fosse verdadeira a causa veiculada na época, a sincronia permaneceria mística. Executado por um michê menor de idade durante um programa malsucedido. Como um de seus libertinos. Sempre retorno a palavras escritas por Glauber Rocha para a Cahiers du Cinéma, nos anos 80, sobre autor e obra:

 

“É o filme de Pasolini que eu prefiro, porque penso ser o melhor filme do ponto de vista da forma: está bem enquadrado, bem montado, bem representado, o filme torna-se num corpo convincente, com uma violência existencial, e não com a violência teórica dos outros filmes. Porque em Salò ele diz a verdade ao afirmar ‘aqui está, sou pervertido, a perversão é o fascismo’. “Gosto dos rituais fascistas, fiz Salò porque é o teatro dessa perversão e o meu personagem, o meu herói ama os torcionários como eu amo o meu assassino”. (...) E após o filme ele morreu numa aventura de exploração do sexo proletário. Pasolini intelectual comunista, revolucionário, moralista, era agente da prostituição, quer dizer que ele pagava aos rapazes, os ragazzi di vita, pelo sexo. Ele procurava os pobres, os ignorantes, os analfabetos e tentava seduzi-los como se a perversão fosse uma virtude. (...) Pasolini, em Salò, aceita a sua verdadeira personalidade. Mesmo se a morte de Pasolini é um atentado fascista, eles aproveitaram a encenação pasoliniana para o matarem segundo os seus próprios ritos.”

 

Certamente rotular Pasolini como "fascista" é uma provocação um tanto injusta.¹ Mas a perspectiva contraditória, culpada, pervertida acusada por Glauber não é uma invalidação do valor político da obra. Muito pelo contrário, é a chave proibida, tabu, que faz Salò funcionar, quase como uma expiação invertida. Pois Salò não é só um filme sobre o Mal, como se observado de fora, de um pedestal moral vitimado de denúncia, é filme-Mal, permeado em todas as linhas e entranhas da forma por picardia.

 

Quando as vítimas começam a trair umas às outras, correndo pelos lados flagrando e delatando-se para os guardas, o filme ganha, por alguns instantes, tons que poderia até descrever como farsescos, quase cômicos. Assim como o absurdo de um quarto de cus levantados para o alto enquanto os mestres escolhem, com lanternas, o mais bonito. Como se o filme existisse dentro de um daqueles buracos abertos para observação, adotando sua textura e perspectiva. Uma espiral sem fundo, sedutora e suja, de horror e graça e ridículo. Desde a abertura, em que homens redigem tratados, filhas são distribuídas entre os amigos de seus pais e meninos pela Itália são separados de suas famílias e apresentados para seu sacrifício, a violência não se anuncia, é sempre súbita, sem explicação, normalizada. Uma ceia é constantemente interrompida por todo tipo de podridão pequena ou grande, mas nunca para. Cenas se seguem pela sala de jantar, e no fundo de um plano ou outro é possível enxergar de relance o mesmo soldado estuprando a mesma menina que derrubou as louças minutos antes, da qual você já poderia ter até esquecido considerando os outros horrores desde então. Banalidade do mal, etc.


salò cena do jantar
Cena do jantar em Salò. Foto: divulgação

 

O corpo, o cerne da questão, coração da matéria, é repleto de excrementos. (…) é exatamente isso que está em jogo: as raízes do bem e do mal no solo virgem com que todos começamos, esse solo tornado fértil, sim, fértil, por excremento. Mas então nada – ou melhor, “alguma coisa” – nos leva, o público previamente distanciado, a assistir com aquela secreção acelerada de prazer e horror. Não assistimos com a boca seca de confusão da vítima, mas com a boca ávida úmida que se baba com o prazer primordial da tortura, refugiando-se atrás da tela de um confinamento ineficaz, o da negação. Pois a vítima em potencial se entusiasma, claramente, com o espetáculo. É evidente que se tornou ela mesma involuntariamente uma torturadora histérica – o espetáculo da tortura é divertido porque não há carne ou pessoa além do balé esculpido de pele dilacerada, de sangue, sempre o mesmo sangue, de silêncio, sempre o mesmo silêncio. E agora devemos revelar a nós mesmos, admitir a nós mesmos, que os gritos de prazer e de dor são tão semelhantes, dependendo se você está em um corpo ou em outro. O corpo do espectador, aquele que está dentro do filme, ou os nossos próprios corpos – não há mais diferença, esse é o monstruoso lampejo de gênio de Salò, o princípio de que a ficção não está mais diante de nós, não é mais uma projeção que somos convidados a testemunhar, mas uma hemorragia invisível.” - Catherine Breillat.

 

Tenho pensado em Salò cada vez mais. Há quase dez anos é impossível passar um dia nas redes sociais sem se deparar com a palavra "fascismo", seja em denúncia, prenúncio ou negação. Esse ano, a Globo Filmes vai levar o Brasil ao Oscar com um filme descrito ad hominem como "importante" para "o momento atual" da "retomada do fascismo", em que toda tortura acontece fora de cena e a catarse final se dá num cartório. Na Inauguração do presidente americano, um tecnocrata encara o decote exposto da noiva de outro tecnocrata enquanto um terceiro faz, descoordenado, um gesto idêntico a uma saudação nazista, que nega ter sido uma saudação nazista. A Primeira-Dama veste um chapéu severo que não só oculta seu olhar como impede que o Presidente a beije. Mel Gibson declara na TV, com entusiasmo, que a volta de Trump é como papai chegando em casa e soltando o cinto da calça para açoitar. Taxas de natalidade baixam, homens clamam por masculinidade, mulheres adotam celibato.

 

Ninguém quer mais ver sexo nas telas. Toda e qualquer intimidade deve ser, exige o público, coordenada. Weinstein, Epstein, Diddy, Flordelis, Gisèle Pelicot, Lily Phillips. Tudo é castrado e pornográfico. Onde será que fica Salò hoje em dia? Será que ainda é um Estado, fantoche, isolado, fantasma? Alguma rede dissociada e abjeta entre Estado e Estado, corpo e corpo, vítima e algoz, objeto e consumidor, ator e espectador?

 

Para Pasolini, em 1975, era um lugar-nenhum de sadismo transposto para lugar-nenhum de fascismo representado em lugar-nenhum de cinema. Sade, Mussolini, Pasolini, todos os três enclausurados no mesmo espaço liminal em seus últimos dias. "Em Salò não há mais fora: Pasolini encena, nem mesmo o fascismo in vivo, mas o fascismo encurralado, fechado na cidadezinha, reduzido a uma interioridade pura, coincidindo com as condições de fechamento em que se desenvolviam as demonstrações de Sade. Salò é um teorema morto, um puro teorema de morte." (Gilles Deleuze, A imagem-tempo). Tão inútil talvez pensar no que existe após a morte quanto no que será feito, pois ainda não foi, pós-Salò. Por enquanto, é o suficiente, tão atual, estonteante, ambivalente e completo quanto deve ter sido há meio século. Se seu criador morreu por nossos pecados, os próprios ou os da obra, ao menos deixou (expeliu?) seu testamento em filme. Descreveu-o como sendo sobre a “inexistência da história”. Assista.



¹ Glauber faz alguns outros comentários em seu ensaio que considero desmedidos, excessivamente puristas, além de descontextualizados sobre como um homossexual na posição e época de Pasolini poderia processar e constituir seu próprio desejo. A comparação negativa com Godard, de todos os diretores, no que diz respeito à suposta misoginia de sua obra é especialmente bizarra: “para ele, a homossexualidade não era uma prática sexual normal, mas uma religião, uma ideologia, um mecanismo de fetiche, um misticismo.”; “Pasolini não gostava verdadeiramente das mulheres. Godard gosta das mulheres mas pensa que elas são sempre putas ou musas românticas. Em Godard há o amor, a paixão, não o sexo: em Pasolini há o contato sexual mas não o amor, não a paixão. Há somente a paixão teórica, o que interessa a Pasolini é o irrisório, é a perversão." 

Comentários


bottom of page