Divine no divã: há palavra surda em Pink Flamingos?
- Thiago Poliano
- 30 de jun.
- 7 min de leitura
Lembro de ter assistido Pink Flamingos pela terceira vez — dessa vez no cinema, na mostra queer do Cinema UFPE. Fui sozinho, faltando aula, meia dúzia na sala. Ri muito. Alguns outros também. Foi uma sessão onde o riso não era comunhão, mas reconhecimento. Reassistir em casa, no entanto, é um experimento diferente. Há menos proteção. A tela diminui, mas a exposição aumenta. Salta aos olhos de forma mais íntima. E então, ao tentar escrever sobre o filme, a pergunta emerge com uma insistência irritante: por que queer?
A questão não é nova, mas continua sendo a mais difícil. O queer aqui não é identidade, não é orientação, não é uma bandeira girando ao vento com aprovação institucional. Não há pedagogia. Não há redenção. O queer em Pink Flamingos se manifesta como uma espécie de sabotagem — não se define por si e dificulta sua definição.
Por mais que pareça óbvio dizer que Pink Flamingos é um filme queer, vou fazer o esforço necessário para ignorar esse óbvio. Porque o óbvio, aqui, costuma ser preguiçoso. Não basta uma drag queen em cena. A presença de Divine, embora central, não é um atestado automático de estética queer — do contrário, Vovózona 1 e 2 já teriam lugar cativo em festivais LGBTQIA+ ao redor do mundo, ao lado de Minha Mãe é uma Peça e outras comédias de peruca e aquendação domesticada. Filmes que lidam com o gênero como artifício plástico — mas que o devolvem intacto, limpo, reformado; adornaciado.
Não me parece ser o caso de Pink Flamingos. Questiono, inclusive, o gesto de incluí-lo em listas do tipo “da sugestão queer ao sexo gay”, “Mais Insano”, “Mais Pertubardor”, “Mais Asqueroso” — como se o queer fosse uma progressão linear, culminando naturalmente no ato sexual nojento entre pessoas do mesmo gênero e nojentas. Se esse fosse o limite, a estética de Pink Flamingos seria opaca, fosca e talhada. Mas ela opera em outra chave. O filme, me parece, que não progride: ele vaza.
Entendo o uso desses adjetivos, claro. É o tipo de classificação que busca domesticar o conteúdo — criar um itinerário, um percurso de leitura. Farol ao mar.
É árduo e, mais do que isso, ocioso tentar mapear o queer do/no filme por seus marcos narrativos — sexo, gênero, escatologia, violência. O que há é uma disposição mais profunda, quase estrutural, de disfuncionalidade. O filme é mecânico, grotesco, cômico, e às vezes simplesmente entediante. Ele não serve para comprovar nada. É mais um ruído do que um ponto de fuga. Um excelente filme.
Algo parecido acontece com o camp, e talvez por isso Pink Flamingos seja constantemente capturado — ou mal traduzido — por esse termo. O camp, nas leituras apressadas, virou sinônimo de exagero estilizado, uma estética da ironia que nos permite rir do que está fora de moda. Que, como uma mola, parece emergir certo sentimento político na vicissitude do termo, mesmo que relutante. Mas a ideia original, vista por Susan Sontag em 1964, era menos sobre humor e mais sobre pertencimento. Para ela, o Camp surgia menos como um gosto e mais como um código: uma predileção deliberada pelo artificial, um pacto selado no exagero. Era, no fim, uma linguagem para poucos, desenhada para que o resto do mundo não entendesse.
É quase desonesto “carimbar” o camp de Susan Sontag em uma única citação — Pink Flamingos é camp, sim, mas isso, por si só, não o faz (ou não deveria o fazer) queer. Não acredito que o queer se construa necessariamente no camp, e tampouco preciso estar certo; a própria Sontag sugere essa abertura quando afirma que, embora a cultura queer pareça ter inventado o camp, se não tivesse sido ela, alguma outra cultura o teria feito — o que já é um vislumbre de que há algo estético, talvez transversal e impreciso, que torna o queer, de fato, queer.
“A bizarre fat woman (Divine) and her misfit family compete with a Baltimore couple (David Lochary, Mink Stole) to be named the filthiest people alive.” Há um gesto que desvia o signo, e é nessa ruptura que se inscrevem os primeiros rastros do queer: a ironia contraposta ao homem homossexual que precisa ser atraente e sexualmente potente, e a bizarre fat woman; misfit family como uma família queer; filfhiest people alive me parece o mote de Pink Flamingos, e estes certamente devem ser os gays.

Foto: Divulgação
“Misfit family” ressoa como família queer. Não no sentido de uma nova conformidade afetiva — mas como núcleo disfuncional, formado por laços de desvio, de Gozo e de não pertencimento. E “the filthiest people alive” não é um insulto, é um título. Não uma condenação, mas uma espécie de coroa. Nesse gesto, Pink Flamingos insinua que os gays — ou melhor, os desviantes — não apenas assumem o estigma, como o reivindicam. É um queer que não busca aceitação. Busca, talvez, o último riso.
Esse casal antagonista de Pink Flamingos, que se insurge contra Divine — rebatizada aqui como Babs, mas sempre Divine em essência — não apenas a confronta, tenta substituí-la. Reivindicam o título de “ filfhiest person/people alive” com uma determinação quase política, como se a Abjeção fosse uma forma de capital simbólico. O gesto, contudo, é mais interessante do que parece. Não se trata de uma simples oposição binária entre bons e maus, ou mesmo entre feios e mais feios. Há uma operação estética mais complexa: esses antagonistas participam da mesma mise-en-scène, compartilham o mesmo sistema de representação. Nesse sentido, eles não são exteriores ao queer do filme; são seu espelho distorcido, sua variação.
Mesmo conformando um casal “heterossexual” (no sentido mais literal: um homem, uma mulher), sua performatividade é irredutivelmente queer. É na exacerbação de signos — cabelos e pubianos tingidos em azul e rosa (que ironicamente reforçam o estereótipo de gênero), gestos grotescos, vocalizações excessivas — o hábito de raptar mulheres para venderem seus filhos frutos de violência fica, acredito eu, de fora — que o filme os insere dentro de uma estética camp radicalizada. Não é a disposição anatômica que define o gênero no universo de Pink Flamingos, mas a intensidade da performance. Divine, enquanto Drag Queen, não é aqui percebida como ícone da fluidez de gênero — mas como centro gravitacional de uma estética do excesso, da transgressão e da repulsa. Como se o longa ameaçasse não pautar o gênero e, neste mesmo movimento, o faz.
O queer no filme talvez não se define por identidades políticas organizadas, mas por uma sensibilidade estética — suja, exagerada, autoparódica. O corpo, a sexualidade, o lixo, tudo é matéria estética. Logo, a pergunta não deve ser "quem é queer em Pink Flamingos?", mas o que é o queer que esse filme encena? A resposta talvez esteja não no conteúdo, mas na forma: “Pink Flamingos” é queer na medida em que recusa a ser moralizado, higienizado ou compreendido. Ele não representa o queer — há o antropofagismo do fetiche inerente do queer e a relação do/com o abjeto. E nisso, está seu gesto mais radical. Vejamos.
Para Rancière, a experiência estética se dá sempre em uma zona de fratura. De um lado, o corpo como um texto a ser decifrado, uma inscrição física que clama por ser traduzida em linguagem. Do outro, o murmúrio de uma palavra anterior a toda consciência — uma força surda, irredutível ao significado. Ou seja, ao analisar Pink Flamingos, parte do gesto crítico consiste em reescrever o óbvio — os signos imediatos que saltam da tela: o exagero performático, a Drag Queen, a perversão, o sexo como escândalo. Mas há também aquilo que resiste à nomeação: uma espécie de murmúrio estético, a “palavra surda” que pulsa no inconsciente do filme, percebida sem ser definida.
O filme reserva duas cenas que borbulham — ou talvez fermentam — como pontos de condensação da crítica que propõe-se: o sexo conformizado e a execução pública do casal — the live homicide. Dois momentos em que a estética do excesso, já presente em toda a obra, se coagula num gesto de camp e abjeto, e toma enquanto castrado antropofágico, o falo.
Quando menciono o sexo conformizado, refiro-me àquela imagem sempre latente que paira sobre o sexo queer: a de que ele existe em oposição a um sexo dito normal, pleno, higienizado. Um sexo domesticado pela ideia de casal, cama, silêncio, penetração — um sexo que cumpre função e reforça norma. A cena em que Connie e Raymond lambem os próprios pés e se masturbam enquanto planejam sequestros é uma paródia grotesca e exemplar dessa norma. É também onde o filme mostra que o Gozo está menos nos corpos do que nas estruturas que os atravessam. Esse Gozo (do modo mais Lacaniano possível), deslocado e teatral, atravessa o aforisma lacaniano segundo o qual o sujeito gosta do sofrer — mas mais ainda: fetiche. Afinal, o fetiche nunca é o falo em si, mas o véu que simultaneamente esconde e sinaliza a possibilidade de sua presença. É a cortina diante da cena, cuja função é tanto mostrar quanto ocultar, num jogo constante de velar e desvelar. Não é o prazer do corpo, mas o gozo do Outro. O que poderia ser interpretado como fetiche de pés não é sobre pés, tampouco sobre o corpo: é sobre o teatro do gozo.
A sexualidade, nessa cena, não é desviada — ela é esgarçada. Não se trata de sexo como plenitude, mas como encenação pulsional. O espectador sabe que não há sexo ali. Ainda assim, inscreve-se por saber que ali não há; só há fetiche pois sabe-se que a castrada não possui o falo, e mesmo assim há desejo; o gozo: não no que se vê, mas no que se pressupõe que os personagens faltam.
Já na cena em que o casal Marble é capturado, amarrado e recoberto com graxa preta e penas brancas, o filme atinge seu clímax político — ou melhor, antipolítico. A execução pública, encenada como julgamento farsesco, não se ancora em provas ou moralidade. Divine proclama:
KILL EVERYONE NOW. CONDONE FIRST DEGREE MURDER. ADVOCATE CANNIBALISM. EAT SHIT. FILTH ARE MY POLITICS.
A sentença ou proclamação não vem da razão, mas da pulsão. A cena opera menos como comentário social e mais como zona de descarga — gozo e abjeção se fundem no mesmo gesto.
Não se trata de justiça. Trata-se do prazer de inverter o mundo. E esse prazer, evidentemente, é assustador. Não porque a violência surpreenda, mas porque ela se apresenta sem véu, sem justificação, como expressão direta de uma ética do filth. É aí que o medo se infiltra, mas não aquele medo nomeável, confortável. Como escreve Julia Kristeva, é preciso diferenciar duas ordens de medo. O primeiro, mais arcaico e fundamental, é um puro desequilíbrio da pulsão, anterior a qualquer objeto. O segundo, o medo que conseguimos nomear e inserir na linguagem, funciona apenas como um substituto lógico para encobrir aquele terror original e irrepresentável.
O medo que se pode nomear é um arranjo. Um álibi. Um objeto conveniente para nos distrair do verdadeiro terror — aquele tremor mudo, anterior à palavra. Uma paz que nunca se firma. E no fim, o pavor que confessamos é apenas isso: o substituto de outro. Um véu.
No plano negativo, – aquilo que, pela omissão e lacunas, exige uma inferência de nossa parte — o filme carrega um resquício queer que (repito) é facilmente percebido, mas dificilmente definido. Essa indefinição não é um erro, mas talvez seu trunfo. Pink Flamingos não afirma, não representa, não defende. Ele se insinua, suja, atrapalha.
Minha intenção ao revisitar o filme, mais do que delimitar conceitos ou validar categorias, foi destacar o modo como a obra se sustenta nesse relance — essa visão periférica sobre a alma, sobre a estética enquanto fruição. Há valor em notar quando e onde o queer se desenha, mesmo que torto, mesmo que irreconhecível por métodos mais educados de análise.
Ressalto, então, a importância deste breve respiro, minha tentativa de acompanhar certas decisões formais e estéticas que o filme assume sem nos pedir licença. E perceber que, mesmo onde tudo parece óbvio, como um grito drag em câmera tremida, a turvação do objeto é inevitável.
O queer não está ali — está no que desvia, no que impede o foco, no que borra a cena.
E talvez isso já baste.
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